Sébastien Joachim

Este blog é um meio de comunicação entre o professor e seus alunos.

sexta-feira, 26 de março de 2010

OS MITOS NA PSICANÁLISE

Mitos e Processos inconscientes

Os mitos - mitos de Édipo,de Prometeu,de Narciso, da horda primitiva, etc - são de um grande auxílio para a compreensão dos processos inconscientes. Salvo o Édipo, depois de se valer deles um tempo como ilustração ou como analogia de certos processos inconscientes, Freud os promoveu ao mesmo nível do que os sonhos e as fantasias,. a fim de se demarcar do uso que deles fazia a simbologia de Jung. .Pois Carl-Gustav Jung os interpretava isoladamente do processo inconsciente stricto sensu, como que no esquecimento de seu caráter polissêmico, e dentro do quadro nocional assaz problemático chamado “inconsciente coletivo”.Ora Freud percebia por trás do Inconsciente coletivo a sombra duma hipótese filogenética que, depois dum flerte temporário, ele acabará por repudiar. Passamos sob silêncio as conjunturas que determinaram o fundador da Psicanálise a tomar, em uma dada época, certa distância do mito como assunto de pesquisa. É até curiosíssimo que o mito rei de seu sistema analítico, o mito do Édipo, não tinha recebido uma atenção primorosa.Nenhuma monografia de grande porte lhe foi dedicada..E sabemos hoje que não há Psicanálise freudiana sem o mito de Édipo, nem simultaneamente (é preciso dizê-lo logo para não se estrepar) sem os processos primários do sonho (condensação, deslocamento, inversão, figuração, ambivalência) Quase todas as outras noções, inclusive a castração (privilegiada por Jacques Lacan), inclusive os mitos de Eros e Thânatos (vulgo Vida e Morte), o primado da identidade e do desejo sexual, se situam no horizonte do conflito edipiano. Do ponto de vista de uma Mitodologia, Édipo tem, portanto, uma extrema fecundidade; suscitou e continua suscitando criatividade, inumeráveis re-escrituras por parte dos seguidores de Freud .Mesmo Lacan se deixou seduzir por este mito cardeal, essa matriz interpretativa em sua leitura de Hamlet de Shakespeare. A glória de Shakespeare, este genial freudiano antes da letra, é de ter burilado o arquétipo de Hamlet, também de Otelo, de Iago, de Desdêmona, de MacBeth, todos tornados protótipos de inumeráveis personagens de ficções assim como a antiga Medéia.
Os mitólogos e os antropólogos, cuja perspectiva histórica, arqueológica (quando não estrutural e de pendor universalista como em Claude Levi-Strauss) nos remetem em geral para os primórdios da Humanidade ou simplesmente à civilização grega, definem o mito por uma estrutura narrativa, uma história exemplar, possivelmente detentora de uma pluralidade de códigos e de um ensinamento moral para a grande comunidade humana. Tudo isso é válido. O filósofo francês Luc Ferry acabou de confirmar isto no seu livro sobre a sabedoria dos mitos gregos.. Até Sigmund Freud (e também Carl Jung0, os estudos filológicos, históricos e antropológicos, de fato em estado de balbucio, abordaram a mitologia numa espécie de exterioridade do Psiquismo ou dentro dum esquema positivista, racionalizante. A leitura freudiana dos mitos insere estes na interioridade daqueles processos que acabamos de designar por “primários” Primários, isto é, antecedentes a todos os outros passos: quer no plano afetivo e intelectual, quer no plano comportamental prático ou místico. Primários, isto é também, pertencentes a uma energia livre, ou seja, uma força desligada de qualquer intervenção da razão. Psicológicos e inconscientes, tais são os mitos no horizonte freudiano. Por que? porque os homens têm uma '"obscura percepção interna""(Leibnitz) do mito elaborado milenários e milenários atrás. O papel da Psicanálise no trabalho interpretativo consiste em trazê-lo à consciência clara face a um personagem real ou fictício, face a seu comportamento, face ao seu dizer e ao seu dito, face ao seu não-fazer ou ao seu fazer,, face ao seu destino, levando em conta o contexto sociohistórico em que ele evolui. Na reformulação do psicanalista Didier Anzieu os mitos falam aos homens não do mundo exterior mas do mundo interior, não da realidade mas das fantasias assim como dos desejos e das angústias ligados a essas fantasias (.Favor entender “a fantasia” no sentido técnico: percepção, lembrança, representação deformada, reconstruída de acordo com as obscuras tendências do desejo ou com o assédio de angústia-originária mal / ou não identificada). As pulsões do Ego e seus representantes-representações são o objeto de uma recusa cega ou dum não-reconhecimento,- de um lado, em razão de um interdito do Superego; de outro lado, em razão do empenho constante dos processos secundários .O que são estes processos secundários? São forças que trabalham na fronteira da consciência / da realidade e do inconsciente, civilizando /'traduzindo os selvagens impulsos dos processos primários em conformidade com uma gramática aprendida ou inventada na hora . O E#go é o palco de tudo isso ele é uma alfândega, uma sujeito que vive no limiar, á mando de dois mestres a conciliar: O Id/ ou forças caóticas do ser, o SuperEgo ou a Lei/ a Ordem. O Anticaótico.
Porém o Ego que somos tende, entre O Id e o Superego, a se engraçar mais para o primeiro, para o mais primitivo, as forças pulsionais. Quando a lei ou a censura ameaça, as pulsões - pulsões de vida ditas pulsões sexuais ou de conservação, pulsões de morte ou de destruição – se encolhem,i.e., ficam recalcadas, de rabo entre as pernas; entretanto, sonsas por natureza,continuam agindo sorrateiramente (é i caso do trauma da infância) até no porão do Id, espalhando sintomas, até o dia D que encontram uma brecha pela qual elas retornam e procuram descarga ou passagem ao ato.(no caso do estripador- se não virarem Chico Xavier por sublimação) Este processo que acabamos de sintetizar explica analogicamente o encaminhamento do Mito no indivíduo e no coletivo. Há momento da história do individuo ou da vida coletiva onde tal Mito desaparece e vive subterraneamente,. Há momento onde ele volta com toda força ao sol do meio dia.
Gilbert Durand e Michel Maffesoli acham que hoje Dionisos, o Deus mítico dos prazeres, da embriaguez por todos os tipos de drogas, retornou. E também, neste auge das novas Comunicações o mito do Hermes, o mensageiro dos Deuses está entre nós nos movendo , está me movendo neste momento que estou lhe escrevendo esta apostila inspirada por um protótipo que perdi de vista no caminho andando conforme a minha inspiração, isto é, enveredado em uma re-escritura traiçoeira.
Não foi estabelecido ainda a quantidade de mitos que atravessam a obra de Freud., rivalizando com fantasias e sonhos. Certas narrativas de sonhos combinam mito e fantasia. O tradutor desta apostila, eu Sébastien Joachim seu servidor, recomenda fervorosamente aos interessados em Psicanálise, o modelo de análise que constitui a leitura do Sonho do Unicórnio por Jean Laplanche ou, melhor ainda, a versão portuguesa de Psicanalisar,obra do lacaniano Serge Leclaire . A leitura de Leclaire foi comentada por Anika Lemaire em seu interessante Lacan: uma introdução .
Vamos apresentar os elementos que embasam a análise do mito num estudo psicanalítico, com o apoio conceitual de Melanie Klein e com a ilustração de alguns mitos famosos na Literatura. Concluiremos por algumas afirmações sobre a importância do mito em nosso trabalho interpretativo e em nossa vida à exemplo de Luc Ferry acima citado.

2-Elementos característicos do mito na análise.

Voltamos a afirmar que um mito é uma narrativa, um discurso de ação dramática (pelo menos potencialmente) composto no mínimo de um enunciado, de preferência de um, duas ou várias frases. O enunciado é supostamente grávido de uma fantasia que nos cabe descobrir..Aquela fantasia por seu turno está acompanhada de um afeto, uma emoção.ou um sentimento Por exemplo, o mito da Medusa, história de uma cabeça separada do corpo, traz consigo, em tese (pois nossos jovens de hoje adoram o horrível !) um sentimento de angústia, e esta angustia é aquela que foi identificada como o componente inerente daquilo que Freud e Lacan convém chamar de castração..Onde jaz uma castração ou perda simbólica, se detectam certos traços acompanhadores da angústia tais como, no caso da Medusa, um mal-estar, o espanto, o terror perante os serpentes erguidos sobre esta cabeça de uma terrível figura feminina, um rosto enquadrado por cabelos indiciando um órgão genital cercado de pelos pubianos, uma dor estampada no rosto, incitando à fuga mais do que à piedade.Esses mitemas são evocadores duma mãe fálica (aquela mulher braba, mulher macha). E um tal espectro simboliza a descoberta pela criança de uma castração imaginária. Este exemplo nos sugere duas colocações de peso :
1- o analista percebe intuitivamente que a narrativa mítica “Medusa”, - (mas poderia ter sido Medéia, Macbeth, e outras narrativas da mesma família, inclusive Barba Azul ) – é independente das línguas particulares e tem como constituintes um encadeamento de frases que obedece a uma lógica outra que a da razão. Os elementos, ou mitemas, narram geralmente eventos passados (Era uma vez...) que são imaginados para acalmar um pouco a nossa curiosidade ou nosso medo face aos enigmas / que recobrem a nossa origem, o sentido de nossa presença neste mundinho, os possíveis de nosso Futuro (principalmente A Morte e seu após). Muitos pastores ganham a vida ofertando soluções mágicas.a respeito desses enigmas..Nessas narrativas,nada corresponde totalmente à ficção nem totalmente à realidade. Triunfa o entrelugar..Quer do tamanho de um Haikai, ou do tamanho da Odisséia de Homero ou de Ulisses de James Joyce, os contos sobre o destino humano chamados narrativas míticas, embora habitualmente desenvolvidos com uma grande participação dos processos secundários (em virtude da vigilância estilística referente à lei do Pai Gramatiqueiro), não deixam de ser penetrados por toda parte pelos processos primários,porque aí rebola a fada Imaginação..Todo o cuidado é pouco do lado do analista a fim que o texto não seja reduzido por uma interpretação de tipo racional ou unívoco. Procurem Semp ao menos duas hipóteses de sentido. Seria propositado testá-las tendo em mente a vontade de verificar a convergência das regras de produção inferido para o mito em processo, e a modalidade energética de se desfraldar dos processos primários, ou seja, as características oníricas destes..Quero dizer, observem a derapada da lógica enunciativa ou da coerência do encadeado dos enunciados SOB A PRESSÃO das elaborações primárias.Entendo por isso, as figuras de deslocamento (Isto por aquilo, gato por lebre, lá em lugar do aqui, ou burla da expectativa lógica0), de condensação (superposição ou junção de coisas que não vão logicamente juntas), figuração simbólica ( a bandeira, no lugar da identidade nacional, cortar os cabelos no lugar de cortar cabeças, escrever água por mãe, dizer rebento por filho, chamar uma obra poética de castelo como Ariano Suassuna em A Pedra do Reino, falar de cueca da mulher e de calcinha do Homem para sugerir uma mudança de escolha sexual), a inversão ( o céu no mar, o mar no céu, o pai tornado filho do filho em papel trocado), o homem em posição de mãe e a mãe em função de pai, adultificação de criança, infantilização de adulto: que é bem uma realidade da nossa ultracontemporaneidade).Veremos mais adiante que Melanie Klein, famosa analista britânica contemporânea de Freud, nos convida a emprestar esse caminho
2- o simbolismo do mito corresponde a uma fantasmática do corpo. Com efeito, o corpo, um corpo imaginário, está sempre requisitado nos mitos e nos sonhos. A cirurgia plástica é um mito distorcida de Isis e Osíris. Pensem um pouco neste mito mesmo todas as vezes que você se institui intérprete da literatura e da Arte: está aqui um monte de corpos desmembrados que solicitam recomposição, reunificação, jamais um livro passa mais do que pedaços de uma máquina à espera de uma montagem. Evite aqui o organicismo que dá tudo por encaixado in aeternum. Pelo menos, Desmanche e Recomponha. Não seja supersticioso. Toda obra é inacabada.Toda obra é Osíris em pedaços que Isis (você) penosamente, vai recompor, vai botar em pé. Pensem também no Mito de Sísifo: um corpo empurrando dolorosamente para cima um rochedo. O que está acontecendo por aí ?. Segundo o psicanalista Didier Anzieu, o significado disto é que os desejos, os afetos,a s angústias, as fantasias são apoiados nas funções do corpo, são articulados a regiões do corpo. Antes da aquisição da linguagem verbal, as crianças dispõem de uma figuração simbólica, que é uma sorte de pré-linguagem universal cujos significantes reenviam a partes do corpo. Não importa que seja corpo do infans, i.e., de criança que ainda não fala; corpo da mãe; na chamada Cena Primitiva ou seja , uma representação fantasiosas do menino safado olhando pelo buraco da fechadura do quarto de papai-mãmãe, e imaginando lutas livres, combates de monstros na cama: o olho imagina mais do que vê: é isso que é verdade, diria o radialista Datena..Tantos os Hermeneutas apegados à intencionalidade fenomenológica quantos aos Cientistas Historiadores da Mitologia passam ao largo da descoberta freudiana do Inconsciente sem mesmo se darem conta da prioridade do imaginário inconsciente do decifrador ou do re-escritor de aqui e agora sobre o que teria hipoteticamente existido num tempo das origens assaz nebuloso. Lendo um mito numa cadeira de textos da nossa modernidade, não devo me prender em prioridade à decodificação e atribuição de sentido de outrora,; minha tarefa principal é de acompanhar ativamente os meandros de um imaginário em estado de parturição de tentar captar a lógica dos processos, o trafegar lógico-alógico do mito até nas suas flagrantes contradições. De ontem para hoje, um mito não se repete.Não se cogita um restabele cimento de mito em sua pureza inicial. Mitos podem ser alegremente desmitologizados e distorcidos ao grande bem da comunidade receptora ou de onde germinou a nova versão , e também à gloria do poeta ou ficcionista que magistralmente deturpou tão bem o protótipo, ao expressar autenticamente a vivência mítica da sua época. Recomendamos neste particular os belos estudos de Hans Robert Jauss em Pour une Hermeneutique littérair e Nem uma organização mítica na pureza.. A análise não pode ser procura daquilo que foi, ela não é repetitiva . Não existe origem certa. Portanto não se concebe re-escritura fiel. Não existe dois analistas que pensam de modo totalmente igual o mito de Édipo. O mesmo complexo de Édipo acentua diferentemente seus componentes (pai-mãe-filho/filha, ou seus substitutos institucionais, cósmicos, antropomorfos ou não) de acordo com as organizações neuróticas em observação, segundo o TEXTO em observação. Por exemplo, no caso do histérico, o amor, a sedução incestuosa desempenham o papel de primeiro plano; no caso do obsessivo, o desejo de morte para o rival constitui o problema-chave; no caso do sujeito fóbico, tudo se articula em torno da angústia de castração. Uma abordagem psicanalítica consiste em pôr à luz, num individuo / texto singular, eventos-lembranças-organização defensiva, que fizeram do complexo de Édipo, para este sujeito, uma experiência singular, irreduzível a qualquer outra. A leitura toma emprestado do material a explorar uma igual singularidade.
Uma interpretação psicanalítica do mito se apresenta como tendo uma função sintagmática (as frases se lêem uma após a outra), mas ela se preocupa também com a função paradigmática: ela procura uma simbolização de processos inconscientes no plano da linguagem. Esses processos (por ex., representantes-representações da pulsão, mecanismos de defesa, angústia) são sempre os mesmos, mas se combinam de modo variado, se diferenciam na história da vida individual como na vida e no contexto cultural de uma coletividade. Universal, porém particular: tal é o Inconsciente, e tal o mito. Mas contrariamente a Carl Jung que se apega ao Coletivo, é melhor pensar junto o Coletivo e o Individual como faceta diferente da mesma medalha. Eu sou do Brasil, mas sou um individuo único no Brasil. O “homem público” desenvolve um imaginário coletivo, o individuo particular que ele é desenvolve um inconsciente particular, mesmo se o mito “homem público”, nele, denota uma solidariedade comunitária.

3- Contribuições de Melanie Klein

Didier Anzieu, perante o discurso racionalista e desafiador de mitólogos como a Historiadora Marie Delcourt, resolveu integrar as visões psicanalíticas de Klein às de Freud na análise do mito, ou seja, dos elementos míticos que se infiltraria em qualquer narrativa. Sabemos que Melanie Klein costuma remontar ao primeiro ano e até ao estado fetal em seus trabalhos teóricos. Foi ela quem incitou Anzieu a localizar certas fantasias fundamentais, por exemplo uma organização significante de poder, bem antes do período marcado por Freud para o complexo de Édipo. Em virtude disto, uma aproximação do ponto de vista genético (histórico) da psicanálise com o que há de mais fecundo na diacronia dos mitólogos modernos necessitaria duas condições já realizadas em Melanie Klein: a revisão por parte da psicanálise freudiana dos estágios de desenvolvimento (oral, anal, uretral, fálica), a renúncia à explicação filogenética, isto é, a explicação do desenvolvimento do individuo pelo desenvolvimento da espécie e vice-versa.

Freud começou a corrigir o atavismo filogenético assim como tendência moralisante dos mitólogos tradicionalistas, mas coube a Melanie Klein sublinhar com força antes de Freud que o mito transcreve em uma linguagem coletiva uma experiência interior fundamental; ele conta como os objetos internos ameaçadores são dominados , como os bons objetos danificados são reparados, como a clivagem do bom objeto e do mal objeto se "perlabora", se trabalha. Segundo uma expressão de Levi-Strauss, o mito é dotado de uma eficácia simbólica Para Freud, a função simbólica preenchia uma função de representação. Melanie Klein propõe uma hipótese melhor sobre a origem da simbolização: por ser incapaz de exprimir adequadamente as suas emoções e suas angústias para com as pessoas que ama ou que inveja, e que aliás não podem satisfazer todas as suas necessidades, a criança as transfere primeiro ãs partes de seu corpo e do corpo materno, e em seguida aos objetos que a cercam. Os símbolos representa esses objetos parciais (fezes, chichi, etc) e depois globais assim investidos. A simbolização preenche, portanto, uma função de perlaboração (=trabalho psíquico, que permite que o sujeito admita na sua vida psíquica elementos até então recalcados). A simbolização culmina no mito, onde não apenas os objetos parciais e globais estão presentes sob forma personificada,mas onde a função que a criou é ela mesma representada simbolicamente. (sic, Anzieu,p.134).A partir da segunda tópica (Id, Ego, Superego) Freud alarga a simbolização, para além das pulsões sexuais, à pulsão de morte. Melanie Klein, por sua parte, considera que a vida psíquica começa com as primeiras posições persecutórias e depois depressivas, seguidas da fase de reparação. A ela caberia enunciar o primeiro enunciado sobre a mitologia adequada `segunda tópica, quando disse: os mitos gregos (talvez todos os mitos, acha Anzieu , transpõem simbolicamente ás diversas formas e os diversos níveis de manipulação dos objetos internos pela mediação das diversas instâncias psíquicas (inclusive a memória).

Chegamos agora a idéia de que os símbolos são de caráter ambivalente, polivalente ,sexual ou destruidor. Freud ira mais longe, zombando ao mesmo tempo dos Hermenêutas Fenomenólogos e dos Junguianos sempre em busca de um sentido, ao declarar (in Anzieu, p.133): o verdadeiro simbolismo desvela e mascara ao mesmo tempo a pulsão interdita. Freud, contudo não tirou todas a conclusões da segunda teoria das pulsões e da emergência do princípio de morte. As contribuições de Melanie Klein constituem um prolongamento essencial do freudismo, ao chamar atenção sobre o fato de que todo material clínico ou de análise comporta temas de despedaçamento do corpo, de "devoração", de destruição por corrosão, de parentes combinados ( representação do pai e da mãe confundidos na mesma imagem), de mãe má e temível, de criança-monstro, de curiosidade para os seres que remexem no ventre da terra-mãe, de partenogênese, de boas substâncias danificadas., diríamos então: do Mal.

Restam mais duas considerações de método. É preciso, em uma boa análise, ter o texto completo do mito, e é preciso recolher estudos relacionados com o material transcrito e que focalizam real e especificamente processos inconscientes Um bel exemplo de estudo é o de Orgel e Shengold sobre o tema dos presentes envenenados de Medeia relatado por Anzieu . O que o texto mítico revela, dizem os autores, se baseia em três observações clínicas: no caso das dádivas vindas de certas mães. A função desses presentes é de manter a dependência simbiótica. Esta função é, à imagem dessas mães, ambivalente. Presenciamos ora dádivas generosas, suntuosas, da boa mãe a seu filho ou sua filha que fica apegado (a) a ela, ora dádivas traiçoeiras, destruidoras por parte da mãe má à criança que procura se afastar dela. Medeia, no começo da história mítica e dramática, deu a Jasão, ligado a ela, armas e produtos mágicos para triunfar do dragão e apoderar-se do velocino de ouro; no final, ela deu a Creuza, a sua rival ( Jasão a abandonou por ela) colar e túnica envenenados que a consumiram viva. Outros textos encontrados pelos autores acima mencionados comprovam a repetição dos presentes fatais, alternadamente benéficos e maléficos ao longo da vida lendária de Medeia. É o exemplo de uma aproximação bem sucedida entre mitografia e psicanálise pela mediação da teoria de bom e mal objeto de Melanie Klein .

4- Duas Análises: Freud e Melanie Klein

4.1- A análise por Freud do Mito de Prometeu

O mito de Prometeu recebeu um tratamento interessante de Freud num artigo pouco conhecido sobre o controle do fogo ..
O ponto de partida de Freud é fornecido por um rito de certas sociedades primitivas: apagar o fogo, urinando. A direção inconsciente desse rito parece aponta uma satisfação de desejos homossexuais. Na realidade exterior, esse rito traz consigo uma inconveniência|: ela priva o homem do fogo. O mito de Prometeu implicita que a renúncia ã satisfação uretral e homossexual seria a condição da conquista e da posse deste elemento civilizacional que é o fogo. Diversos sintagmas no discurso manifesto do mito expressam esse sentido latente , e eles o fazem mediante dois mecanismos : a figuração simbólica e a inversão no contrário.

Prometeu transporta o fogo roubado aos deuses no talo oco de uma cana, figuração simbólica do pênis,; e também simultaneamente, reparamos uma inversão no contrário, dado que , na realidade, no pênis, o homem abriga água do jacto de urina , e não o fogo que é o contrário da água. O ato de Prometeu é uma fraude: outra figuração simbólica. Os deuses gregos figuram não o Superego, mas as pulsões; aqui, porém, não é o Id / o isso, o desejo homossexual, que se encontra liquid-ado quando o homem renuncia a extinguir o fogo.

Prometeu é punido; um pássaro, abutre ou fênix, lhe rói o fígado : outro exemplo de inversão no contrário. Na Antiguidade, o fígado era a sede dos desejos . No discurso manifesto o mito, Prometeu é punido por ter-se deixado guiar por seus desejos..No pensamento latente, é o contrário: Prometeu oferece o exemplo de renuncia a um desejo, para o bem da civilização. Ora, parece que todo desejo de renuncia suscita uma resposta agressiva, já que Prometeu é punido; sua renuncia é percebido como algo desagradável, na lógica inconsciente deste texto mítico.

Um pássaro lhe devora o fígado: o pássaro é uma figura simbólica habitual do pênis; aqui é uma abutre ou, de preferência, uma fênix animal que renasce de suas cinzas, figuração simbólica da volta da ereção. A sensação de calor na ereção é aliás figurada pelo fogo. Assim, como no mito da Medusa (os cabelos erguidos sobre a cabeça, os serpentes apontando para cima), a volta da ereção vem consertar os prejuízos da angústia.

O material inconsciente, subjacente ao mito da conquista do fogo por Prometeu está ligado afinal à passagem da problemática uretral (crianças nascem da urina) e à problemática fálica (crianças nascem do esperma); o ato de mijar e o ato de estar em ereção preenchem duas funções do pênis fisiologicamente incompatíveis . A antítese entre as duas funções levam Freud a afirmar: "A antítese entre as duas conduz o homem a apagar com seu próprio fogo a sua própria água..Vale a pena citar na íntegra a conclusão de Freud sobre o mito de Prometeu :

A gente se pergunta se dever-amos-ia atribuir à atividade mito-poética o seguinte destino : produzir sobre uma palco uma representação disfarçada de processos psíquicos universalmente familiares, sem outra função que o puro prazer da representação. Não há como responder com certeza antes de ter previamente entendido plenamente a natureza dos mitos. Mas nos dois exemplos do fígado sempre renascente de Prometeu e da fênix que cada vez o devora , é fácil reconhecer uma finalidade precisa . Cada um dessas micro-narrativas do mito descreve o reviver-se dos desejos libidinais depois de sua morte posterior à satisfação.Cada um testemunha assim da indestrutibilidade de seus desejos: depois do castigo, o culpado parece ter a segurança de que , depois de tudo, no fundo do fundo, não sofreu de nenhum dano.

4.2-A análise da Orestia de Ésquilo por Melanie Klein

Anzieu os apresenta um artigo póstuma de Melanie Klein, datado de 1963, sobre a trilogia do poeta trágico grego Ésquilo, A Orestéia ou Orestia, segundo os tradutores. O intuito de psicanalista francês é de nos demonstrar como as percepções freudianas sobre a análise do mito ganhariam a ser retomadas e completadas. E um tal gesto de retomar e de completar tivesse sido qualificado de empreendimento de Literatura Aplicada por Pierre Bayard , se Melanie Klein não fosse suspeita de aplicar à Orestéia uma teoria antecedente ao ato de ler.

Mas antes de apresentar o resumo do artigo por Didier Anzieu, achamos útil , enquanto tradutor e comentarista, abrir um parêntese esclarecedor da teoria kleiniana do psiquismo. Neste respeito, reproduzimos um trecho de um trabalho nosso que foi publicado em Anais de Colóquio do ano 2003 .

Nossa própria exposição é tributária do livro do estudioso francês Michel Collot , La Matière émotion onde este começa por indicar para a razão de seu interesse para a psicanálise kleiniana: ela proporciona ,servantis servandis, uma teoria da criação cuja tese central é “a dialética da perda e da reparação, da construção e da destruição...”..Viram logo após as linhas mestras da teoria de desenvolvimento de Klein em duas fases capitais: a posição esquizofrênica, que corresponde à uma separação. Neste respeito, a não integração do ego e do objeto de desejo (ora bom, ora mal) , por exemplo, na escrita poética de Jules Supervielle (francês nascido em Montevideo), se denota por flashes de angústia. Mas felizmente lhe sucede a segunda fase, a posição esquizo-paranóide, a qual evidencia mecanismos de integração e modalidades compensadoras de comportamento, de reparação dos efeitos destruidores que ameaçavam de desencadear-se ou de se instalarem na fase anterior. Klein cunhou aqui dois conceitos: a introjeção e a reparação, que se tornam categorias de análise da criação (ao olhar de Michel Collot). O estudioso francês recorre oportunamente p. 130) a um dos discípulos mais autênticos e mais famosos de Melanie Klein, Hanna Segal emite esse pronunciamento decisivo no que tange ao nosso assunto :
“a dor do luto vivido na posição depressiva e as pulsões reparadoras
desenvolvidas para reconstituir os objetos amados internos e externos
são o fundamento da criatividade e da sublimação(,,,). Resultam
primeiramente da preocupação com o objeto do desejo/do amor e da
culpabilidade para com este desejo,e , em seguida, da vontade
consciente /inconsciente de reconstruir esse objeto, de preservá-lo e
de torná-lo imperdível (...). O ardente desejo da criança-de-mama de
recriar seus objetos perdidos o incita a pôr junto aquilo que foi
rasgado em pedaços, a reconstruir aquilo que foi destruido, a recriar
e a criar.”

Depois deste parêntese, voltamos ao artigo em pauta,
Klein mostra primeiramente como a posição persecutória é encarnada por Agamenon e Clitemnestre, o rei e a rainha. O Rei dos reis orgulha-se excessivamente de ter impiedosamente destruído Tróia e os Troianos. O objetivo oficial de Agamenon é de ajudar o seu irmão Menelas a reencontrar Helena seqüestrada, Mas isso não passa de uma racionalização de sua inveja destruidora. Esta paixão negativa produz em Clitemnestre e em seu amante Egisto o medo persecutório de ser por sua vez destruídos: isso se chama uma ação de retorção.A razão posta à frente por Cltemnestre no texto manifesto é a de que Agamenon não é homem a recuar diante de nada, uma vez que já tem se mostrado capaz sacrificar a sua própria filha Ifigênia. Ora, as duas situações não são idênticas, mas os envolvidos tem tudo a temer.

Em seguida, a posição depressiva esta encarnada por Orestes . Orestes hesita em matar Clitemnestre, apesar do deus Apolo, seu superego rígido, lhe tem dado a ordem. Electra o incita a executar essa ordem. Mas Orestes, filho de Clitemnestre, fraquejou perante a evocação dos cuidados e do seio que ela lhe dava quando era criança. Para cometer o matricídio, ele precisava ver a sua mão debruçando e gemendo sobre o cadáver do amante (Egisto). Orestes a matou por ciúme edipiano, não por invejo destruidor. Logo depois do assassinato ele foi perseguido pelas Fúrias (as Erinias), figuração simbólica do objeto interno perseguidor, ilustração do remorso de ter destruído o objeto amado.

A posição reparatória esta encarnada por Atena, - emanação de Zeus , o ideal do ego, isto é, o Superego construído em torno do bom objeto. Atena delega ao tribunal do Areópago o julgamento de Orestes.. Por sua voz preponderante, a mesma Atena decide da absolvição do réu. Orestes, livrado das Fúrias, acede ao superego regulador pós-edipiano. Ele reencontra a alegria e o trono.
Afirma conclusivamente Melanie Klein:

A culpabilidade, a necessidade imperiosa de reparação e de perlaboração da poição depressiva rompem o circulo vicioso das pulsões destrutivas engendrando a angústia de perseguição; pois esta reforça por sua vez as pulsões.. As crenças ctonianas ( referentes ao ocultado, aquilo eu é debaixo da terra, ou na barriga da mãe, no estado fetal) pertencem à posição persecutória. Os ctonianos representam os bebes que a mãe carrega dentro de si antes que estejam nascidos e que a criança tema de ter destruído por suas fantasias ciumentas e hostis.


Uma palavra final: Dizem que os mitos são os sonhos da Humanidade. Mas esses sonhos podem se revelar pesadelos quando os restos diurnos se ligam aos processos primários para exigir que o recalcado seja passado a limpo. Estejamos vigilantes em nossos sonhos.

Corolário:
o verdadeiro método de análise freudiano.

Reiteradamente vemos denunciando ultimamente, a heterodoxia de uma certa hermenêutica que se deu abusivamente por uma abrdagem psicanalítica, mas que não passa de uma filosofia da consciência que coloca a consciência no bojo do inconsciência, por trás de conceito como a intencionalidade, ou de novidades instrumentais tais como as chamadas Linguistic turn ou Narrative turn. Apesar de sua inegável honestidade intelectual, Paul Ricoeur, defensor de Freud contra seus detratores ,mas voltado para a teleologia e a construção de si mesmo no ato interpretativo , se revela por isso mesmo o mais ilustre representante desses "falsos amigos" da Psicanálise que, nas pegadas de Carl Jung, acabam por desvirtuar a descoberta de grande Vienense e a confundir a empreitada original deste com uma Hermeneutização do Inconsciente.
Eis a tese formulada e brilhantemente defendida por Mi-Kyung Yi no seu sólido trabalho intitulado Herméneutique et Psychanalyse, Si proches. si étrangères . Sintetizaremos rapidamente aqui a conclusão e os argumentos próximos da conclusão desse livro a fim de orientar os espíritos sobre o que é o método psicanalítico. Em certos de meus seminários, apoiado em Jean Forest e Pierre Bayard, já tentei definir, sem grande êxito, o que é, e sobretudo o que não é a Literatura. Volto tentando novamente, acompanhado desta vez de dois estudiosos do campo literário empenhados , eles também, em esclarecer o que poderia ser o seu domínio de pesquisa, em um livro a quatro mãos. Trata-se de Jean-Jacques Lecercle et Ronald Shusterman, L'emprise des signes: débat sur l'expérience littéraire

Em um certo sentido, os "mitos" (no sentido de inexatidões) que deturpam a Psicanálise são geralmente aparentados aos que rondam em tornam da definição do literário. Um e outro campo, de contrário a uma descoberta, procuram sem dogma predeterminado a Alteridade. O inconsciente é uma alteridade que surgem. Se pressioná-la. Ele foge para o recalque e ficamos com o nosso próprio narcisismo de pesquisador demasiadamente sério. O texto literário tem muito a dar. Ao se colocar no além do bem e do mal, ele resiste a toda moralização ou busca existencial planejada. Num e outro domínio, os melhores achados são frutos do acaso. Mas esse acaso só emerge se, na análise como na leitura , respeitamos três anti-regras :

1- a livre associação-dissociação que consiste em deixar o texto falado ou escrito vir até nós numa igual importância sem privilegiar nenhum elemento;. Pois a tarefa é antes de tudo ligar e conectar teimosamente em certos lugares, e noutros lugares desligar aquilo que está preso como um complexo;
2- a atenção flutuante vem completar a atitude de desprendimento e de democratização da escuta O Hermeneuta se orienta numa certa direção, ele é motivado por um sentido a construir e atribuir. O analista não tem objetivo prévio, não pretende desvendar um sentido, ele é um anti-hermenêuta quando predomina nele o construtivismo. A psicanálise, diz Jean Laplanche, é uma anti-hermenêutica toda as vezes que se considera que viver o sentido, elaborando-o importa mais do que procurar, achar, atribuir e encerrar a operação. Neste aspecto, Freud tem declarado a análise interminável..
3- A atitude interior. Essa expressão designa uma deontologia ou ética de trabalho. De um lado, o analista deve guardar a neutralidade, deve resistir a dar resposta como um sujeito suposto saber (Lacan). Ele evitará importar na cena de leitura ou de cura uma teoria maciça cujo efeito provável é o amordaçar do inconsciente. Ele ficará em estado de alerta no que tange aos seus demônios interiores, sempre à espreita, e que tendem a invadir contra-transferencialmente o palco e perturbar o diálogo analisante-analista, sujeito leitor- interlocutor texto.


Uma vez observadas essas regras, se tivermos sorte chegaremos um dia a descobrir paulatinamente nos desfiladeiros da leitura da alteridade para onde vai o texto, no lusco fusco fugidio em que se manifesta a indeterminada alteridade dos processos psíquicos. Talvez seja esta alteridade aquilo que nos levará ao que é a Psicanálise, ao que é a Literatura..
Sébastien Joachim, 26 de março de 2010.

FIM

Um comentário:

  1. Estimado professor Sébastien Joachim,
    Leio com atenção seu texto preciso e agradável, encontro nele referencias de autores que me incita a ler. Faz um tempo que venho estudando o mito. Tomo como referencias o capítulo XXI de Antropologia Estrutural de Levi Strauss e o primeiro de Mircea Elíade do livro Mito e Realidade. Tento formar assim um paradigma para localizar os elementos estruturais de um mito e fico avaliando em cada ponto do Eros do Banquete de Platão, O mito da horda (que parece ser uma combinação da Teogonia da Ática com o Orfismo da Trácia), o mito da origem da escrita no Fedro. Até onde podemos dizer que estes são mitos vivos, ou revividos em análise? Os pontos indicados por Levi Strauss e os indicados por Elíade repetem-se hoje nos vínculos terapêuticos ou ordinários. Chego ao Fedro pelo caminho da Farmácia de Platão, de Jacques Derrida. A origem da escrita como droga, onde hoje opõem-se os traços mnémicos à memória “virtual”. Tenho feito este exercício divertido e instrutivo com os alunos da disciplina que ministro na UNIJUI, na outra ponta do Brasil. Assim, com o passo das turmas tenho-me formado a experiência íntima de que não podemos desprender o mito da formação do psicólogo. Uma disciplina no estilo de Psicanálise e Mitologia é um bom ritual, até porque falando sobre o que pode ser conhecimento, no Teeteto de Platão, Sócrates diz que a sua busca é responder à causa do equívoco psíquico. Ele escutou dizer que a Letra (stoijerion) é o primeiro elemento inconsciente (an epistemousa). Acho que no Teeteto esta pressente o mito de Artemis que pode auxiliar nos partos e explica a maiêutica, a Origem da escuta.
    Abçs.
    Gustavo Héctor Brun

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