Sébastien Joachim

Este blog é um meio de comunicação entre o professor e seus alunos.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Poética do Imaginário, Aplicação.

A aula-seminário de 19 de abril começou por uma rápida informação que eu trouxe sobre a relação entre “Xamanismo e Literatura” e sobre a reescritura.

A re-escritura é o processo da Mitopoética ou Mitologia Comparada ou Poética comparada. É uma investigação que começa todas as vezes que na leitura do texto registramos ou suspeitamos a presença de um mito já divulgada pela História cultural do Ocidente ou do Oriente. Abrimos aqui um parêntese para dizer que isto não impede, na ausência deste reconhecimento ou desta suspeita e no fim de uma leitura atenta, emitir a hipótese de um mito inédito em construção na dinâmica de um processo de escritura. Segundo Fabio Josgrilberg (Cotidiano e Invenção. Os espaços de Michel de Certeau. São Paulo: Escrituras, 2005,p.50),uma tal hipótese vai ao encontro do pensamento de Michel de Certeau, Pois, para o grande historiador e pensador francês, na modernidade a escrever se tornou uma atividade mitizante, uma construção de mitos, embora tradicionalmente tivessemos reservado a palavra mito para o gênero narrativo. No entanto, devemos admitir com Bachelard a presencia subjacente de uma narrativa, de um mito potencial em um grande número de palavras associadas a uma ação, à uma irradiação (dançar,rir, plantar) ou mesmo certos substantivos ( fogo, água, ar, terra) aos quais acrescentamos “flor” com o poeta Mallarmé,Mais ainda, refletindo sobre a tríade nocional “Schème, Type et Archétype”, (In Questions de Mythocritique, D. Chauvin, A. Siganos, Ph. Walter,org.Paris, Imago,2005,p.307-317),Laurent Mattiussi confirma o grosso modo o pensamento de De Certeau na passagem (p.313) onde ele declara que, desde Mallarmé, “a literatura retoma por sua conta própria os procedimentos de tipificação que constam no mito”.

Fechando o parêntese, para voltar à modalidade tradicional de aparição do mito, para indicar mais uma vez o caminho interpretativo que se empreende logo que sua presença foi detectada. Procedemos a uma genealogia nietzscheana (Genealogia da moral) ou uma arqueologia foucaultiana (Arqueologia do saber) com base na História literária/cultural e na História social, depois de uma familiarização preliminar com as de análise de Gastón Bachelard, Gilbert Durand, Mircea Eliade, Paul Ricoeur, Ernst Cassirer,Jean-Jacques Wunenburger, Harold Bloom (The anxiety of influence), Antoine Compagnon (O trabalho da citação),a noção de Palimpsestes de Gérard Genette, de re-escritura tal como foi observada em J-L. Borges, assim como certas idéias de Freud-Lacan sobre a “reprise”/ a retomada, a abordagem alegórica de W. Benjamin. Dispomos assim de uma ampla gama multidisciplinar de recursos no horizonte de uma tal pesquisa. Pessoalmente consideramos este gênero de estudos no domínio da Literatura Comparada, quando se toma o rumo tradicional, e no quadro da Poética na acepção aristotélica, quando adotamos a perspectiva de De Certeau e de Mallarmé. No que diz respeito à oportunidade deste tipo de investigação no Brasil, remetemos ao capitulo de Benedito Nunes “Volta ao mito na ficção brasileira”(B. Nunes, A clave do poético.Org. de Victor Sales Pinheiro. São Paulo:Companhia das Letras,2009, p.289-302).(Esta na Casinha, e junto com apostila sobre os Mitos cósmicos tirado da Dissertação Refém da Infância)

Sobre “Literatura e Xamanismo”,

,de que falamos muito rapidamente na aula anterior.

Num volume de homenagem dedicado pela casa editorial parisiana Cahiers de L´Herne ao famoso especialista da Mitologia e Historiador das religiões o romeno Mircea Eliade, o estudioso Jean Biès apresentou um esquema em três partes para investigar este tema, principalmente na poesia.

Convém primeiro estudar o processo de INICIAÇÃO no ato de escrever ou no ritual da escritura. Lembro-me ter lido muito anos atrás dois livro relacionados com este aspecto: Paul Bénichou, Le sacre de l´écrivain; sobretudo, Claude Abastardo,Mythes et rituels de l´écriture. O poeta ou o escritor recebe na vertente da iniciação uma investidura que o põe à margem sem o separar da sua comunidade (cf. o poema “O´albatros”, do volume As Flores do Mal de Charles Baudelaire. Ele endossa uma função de “ser-de-fala”, de sujeito que profere uma palavra-energia suscetível de domar forças do universo ainda mal conhecidas, vale dizer ele detém um poder de “cura pela fala” (expressão de Anna O., a primeira paciente na história da Psicanálise). Uma transcendência pela fala e também pelo gesto que a acompanha. Um dos comentarista de Michel De Certeau,o poeta e crítico literário francês Michel Deguy declara a respeito desta transcendência mediada por uma fala similar à fala mítica que se trata de “uma posição supra-sensível de onde o sensível é visto, dominado até um certo ponto” (Note sur Le syntagme “Fable mythique. In Rue Descartes,Revue Du Collège International de Philosophie, N. 25,1999, p.45)

Em segundo lugar, é preciso examinar o que se chama “a ABSTENÇÃO DOS PODERES”, pois o xamã é um ser depreendido, é pela sua distancia o imediatismo, pela renuncia a todo controle em prol de si mesmo que ele escapa ao karma deste mundo.

Esta disponibilidade total conduz a uma possibilidade de comunicação com o transcendente, uma chance de ser investido ,graças à uma receptividade máxima, por vozes de diversas proveniência.. Decorre disto a capacidade de particular de ouvir, de perceber de um modo transcendente, como numa situação de êxtase. E isso se chama INSPIRAÇÃO. Tudo se passa como se ao renunciar a tudo que é imediato, ao voar por cima de mundo material, o xamã ganha o privilégio de uma segunda visão, uma perceptividade de alcance maior. Ela consegue assim a por em conexão realidades aparentemente desconexas. A abrir mão de toda ambição de dominação imediata se eleva a uma outra forma de subjugação dos males deste mundo,

Reparei em seguida nos poemas que José Juvio me comunicou uma saturação de imagens da natureza, de rituais de encaminhamento para a êxtase, mediante um sobrepujar-se do peso da gravidade, a presença de pássaros muitas vezes metonimizados pelo vocábulo “asas”, ou por objetos técnicos como o avião.

O mais interessante é que essa leitura cursiva me ajudou a descobrir uma função xamánica não apenas em toda poesia, mas no poético como liquido amniótico em que banha toda obra literária e artística significativa, como O SOL dos TRÓPICOS, de David Gonçalves. Obra marcada pela poesia nos toques descritivos sobre a natureza, nos lampejos enunciativos sobre a poesia canção, sobre a parte idílica dos encontros amorosos, obra marcada também pela tragédia do amor não partilhada, cálculos traiçoeiros e sórdidos que desmoronam toda uma vida. Mas na tecla xamánica, notamos que o artista poeta transporta o seu público para uma realidade que faz esquecer a miséria deste mundo: ele é portanto um xamã curador. Mas por um engano cruel, na tecla irônica dos primeiros capítulos do romance de O SOL dos Trópicos padre Deuteronômio exerce também essa função: duas ou três vezes, ele foi chamar na mansão de Pasternak para aliviar a sua filha Crisálidas de um mal misterioso. Seria interessante ler pelos detalhes os capítulos onde Deuteronômio, foi acolhido e recebeu uma investidura xamánica: ele é preferido no lugar de um médico tradicional, ele é cumprimentado, festejado como um verdadeiro mago pelos resultados sem nada comparáveis que seus “passes mágicos” conseguem, uma vez que o mal não é coisa material mais coisa da alma. Entretanto o leitor está sabendo que, longe de ser um santo, Deuteronômio é o lobo no redil.

São alguns elementos que deixaremos de explorar a fundo para não desviar do propósito de encarar de frente a simbólica do mal. O beneficio é de nos fazer entrever a presença em Crisálidas de um mistério do mal que, se não fosse psicossomático, pode bem escapar ao olho nu e fugir do alcance das realidades nomeáveis pelas palavras de nossa enciclopédia. Quando isso acontece, o ficcionista, mais habilidoso do que os teólogos, se transforma em poeta e em narrador que entre em êmulo com os narradores bíblicos, inventando cenários, personificando, corporificando, tornando tangível, audível, familiar, aquilo que é puro espírito, intocável, e inaudível. Estamos em pleno mistério da trans-substanciação poética. mesmo se tivéssemos a ingenuidade de pensar que efetuamos uma leitura literal. É uma oportunidade para mim de corrigir o lingüista dinamarquês Louis Hjelmslev: o sistema lingüístico primeiro que ele imaginava servir de escadinha para um sistema modelizante de segundo grau chamado Literatura passa de fato a ser coincidente com o primeiro. Re-esquentaremos essa problemática mais adiante.

Para servir de lembrete: são três as vias de investigação no domínio: do xamanismo poético. São designadas por três expressões-chaves: I) Iniciação, II) Abstenção dos ´poderes, III) Inspiração( Jean Biès, Chamanisme et littérature. In Mircea Eliade. Cahier de L´Herne. Paris. Editions de L´Herne. Biblio-Essais, 1978.)

Seminário do dia 26 de abril

No dia 12 de abril , temos iniciado uma leitura da Simbólica do mal no romance O Sol dos Trópicos de David Gonçalves.

Comecei por umas palavras sobre a intriga. É a história de um padre que atravessa uma grande crise moral. Seus desejos carnais, as aventuras e dilaceramentos morais que disto decorrem além de seu desentendimento com o seu superior o Bispo, disputam o espaço das 4oo páginas do romance com a temática social dos Bóias Frias lutando para trabalhar, ter um salário justo, uma vida decente.

Falei do quadro físico, do predomínio das imagens cósmicas, em primeiro lugar do sol e com ele do calor excessivo que se traduz em imagem de suor, de mau cheiro concomitante à miséria física. Até a chuva fica na decorrência do sol de chumbo, pois não alivia a atmosfera castigadora. Mas no desvio de uma página podemos depararmos com uma aurora ou um fim de tarde bonito como uma benção repentina da Natureza num meio dominado pela violência: a história é salpicada de autoritarismo, de brigas, de linchamento, de assassinato seguido consumo de carne humana em um ambiente de festas, de dança e de bebedeira. Essa exacerbação pelo alto é uma transposição na ordem moral do arquétipo do Fogo aliado ao SOL quase sempre ao seu zênite.Pelo baixo a exacerbação é de um estado de miséria, de esmagamento, de desprezo a nível quase absoluto que cai dos poderosos (Fazendeiros, Banqueiros, Bispo e Arcebispo, Políticos) sobre os bóias frias, os pequenos lavradores, os meninos de um orfanato. O mito solar tem recebe reforço por parte da geometria que está no nome da cidade: Quadrínculo, lugar onde estão enjauladas as vítimas do Poder que bota fogo nelas. Quando há interlúdio de chuva, nada faz para atenuar este fogo infernal.

No final, o Padre Deuteronômio abandonará o convívio da Igreja, dos Grandes do pedaço, para um destino de proletário, mas saindo da jaula de Quadrínculo lado ao lado de seu filho reencontrado entre os boias frias. Pois, um dos grandes dramas de sua vida tem sido o abandono na volta ao Seminário de uma moça (Eleonora) e do filho que resultou da aventura amorosa com ela. A mãe morreu, o filho foi para um orfanato desconhecido. E quando reapareceu no cenário será para resgatá-lo milagrosamente do inferno de Quadrinculo. O como deste resgate foi mediado por uma operação espacial imaginário que consiste na “mise em abime” de Quadrínculo. No começo da História o padre tem chegado de um outro lugar , de uma outra paróquia de onde foi afastado pela ordem do Bispo por ter cometido o pecado de ter-se aliado aos boias frias. Foi a queda num primeiro buraco, pois o castigo consiste em ser mutado de um lugar bom de se viver para um buraco, no sentido popular da palavra. Aí, vai se repetir a mesma falha haja vista o peso do nome do herói sobre seu destino: na ficção o nome é o destino, assim como o sexo. Seja dito de passagem, nesta ficção em particular onde triunfa o poder patriarcalista, as três jovens Eleonora, a prostituta da casa de Madame Consuelo, Crisálidas (filha do poderoso Pasternak) foram humilhadas e ofendidas, duas se suicidam uma sai do cenário depois de ter escapado a um assassinato. Belo bilã ficcional. Mas por vezes coincidem real e ficção:as delegacias de Mulheres são afogadas sob o excesso de queixas. Deuteronômio caiu, dissemos numa cidade-paróquia que além de simbolizar a sua fidelidade na função deuteronômica (ajudar os necessitados que são as bóias frias) simboliza para ele um buraco múltiplo. Vale a pena acompanhar pari passu, isto é, passo a passo, os diferentes lugares por onde ele principalmente transitou nesta cidadezinha. Paul Ricoeur facilita a nossa leitura ao distinguir três tipos de imagens na sua poética dos símbolos: as imagens cósmicas, as imagens oníricas, as imagens poéticas. As primeiras repousam nas realidades e fenômenos da Natureza, que Bachelard soube genialmente explorar. Já entrevemos a função simbólica do sol tropical. Sua presença ubíqua traduz um mal-estar físico num nível primário , afim de orientar o leitor ao sentido latente, metafísico que penetra o ambiente, manipula as mentes, anima os corpos, os braços para matar, cortar, esquartejar, linchar ( o assassinato do homem que virou churrasco, a prostituta da Casa de madame Consuelo sob a faca do facinora Tonico) ; o sol, seu calor excita os desejos para desafiar a lei moral ou juramento de padre, ele também pode desanimar, seu excesso pode desmoralizar, tornar apático e sem força para cumprir o dever ( o padre manda o seu sacristão atender os fieis em seu lugar). Entretanto, a história demonstra também que roda imagem é ambivalente. O mesmo sol, a mesma natureza que mata sabe vivificar ,Cá e acolá, no desvio de uma página do romance, pinta o sol duma aurora bonita, dum crepúsculo insólito se tornar convidativo e cúmplice de uma euforia que ritma as paixões de amor, encoraja Eleonora a acreditar loucamente que poderá desviar da sua corrida ao altar o seminarista Deuteronômio. O mesmo acontece com Crisálidas: por que não ficar comigo namorando para sempre nesta decoração que a Mãe Natureza preparou para nos; joga no lixo a batina e as babaquices da Igreja! Deu o que deu: a queda num buraco moral.

Chegamos assim às imagens oníricas.

Elas vão acentuar a queda por uma transferência do cenário externo no interior da psique do personagem. O mal vira menos palpável, por que ele elege domicilio dentro do ser, se alimenta pela sua própria energia interna. Assim o buraco de tal “locus amoenus” identificado lá fora na Natureza e a dança do desejo que ele suscitava nos namorados, passa na narrativa a ter construções paralelas numa outra cena. Nos sonhos, entregue a si mesmo e à fúria da fantasia e do desejo, Deuteronômio gozou de vários sonhos hiper-eróticos indignos de um padre: mais uma queda, em buracos invisíveis desta vez.O mais significativo sonho de Crisálidas descrito na narrativa se efetuou num “locus horrendum”. Foi talvez um pesadelo, a não ser um modo disfarçado de autopunir-se ou de gozar masoquistamente. Aconteceu numa parte do enredo onde o amor de Deuteronômio resfriava e desabava. Os elementos mundanos que intervém no cenário interno da psique são emprestados da noticia televisiva de um Deuteronômio refém de bandidos perigosos. O que reforçou o medo da perda do amado. As imagens oníricas de violência sobre a pessoa do padre, de brutal estupro de Crisálidas repetido por cada um dos facínoras apontam talvez em duas direções: de um lado,a compensação de desejo reprimido e em perda da intensidade antes experimentada; de outro lado, a premonição da saída total e odiosa do padre da sua vida de menina ameaçada pela loucura. Este sonho sanciona o desastre de uma vida que deu uma guinada em direção daquilo que sua recalcada educação cristã denominou de inferno.

Para Ricoeur, como para Wunenburger, o que seriam as imagens poéticas deve jorrar como as imagens divinas ou as da profecia da profundidade do ser. Normalmente, elas rompem radicalmente com a exterioridade. Portanto, são imanentes. A imagem onírica se abastece na fantasia e naquilo que se chama “restos diurnos”, ou seja, fatos da vida cotidiana anteriores aos sonhos, eventos de que fomos testemunhas ou que nos foram reportados, como por exemplo pela Televisão. No caso do pesadelo de Crisálidas, a noticia mostrou o seqüestro do pai e do padre (A associação dessas duas figuras paternas, o segundo em posição de xamã no texto, daria lugar a considerações psicanalíticas em que não entraremos aqui). O buraco físico, o buraco máximo posto em abismo na situação do padre, só aparece perto do fim do enredo. Mas é oportuno antecipá-lo agora , pois ele concerne à nossa reflexão sobre a natureza das imagens poéticas. Aliás, Ricoeur não coloca divisão estanque entre suas três categorias de imagens. As duas primeiras (as cósmicas e as oníricas) são comprometidas as primeiras inteiramente, as segundas parcialmente com algo de físico, Contudo mantém uma relação misteriosa com as terceiras, as imagens poéticas, que são em principio irreferenciais, sem relação com a exterioridade. Quando se trata da Falta ou da Queda humana, ou seja, da Simbólica do mal, estamos falando de tais imagens transcendentes, cale dizer inacessíveis á razão, à explicação. O mito providencia a compreensão, não a explicação, segundo uma distinção cara à Hermenêutica de Paul Ricoeur.

Vamos descer a algo mais concreto antes de perseguir a natureza dessas imagens poéticas e míticas.

Ousaríamos avançar que a trajetória de Deuteronômio exibe uma sucessão de quedas que se iniciou com a entrada no seminário e que teria seu ponto mais baixo (e não de apogeu, se tratando de buraco) naquela queda que anunciamos há pouco como sendo o buraco mais profundo. Esta sucessão de passos em falso começou pela entrada no seminário de um rapaz ingênuo; ele não tinha a vocação religiosa, só um concurso infeliz de circunstancias o empurrou para onde não devia. Essa primeira mancada será seguida de muitas outras menos notáveis, mas que todas concorrem a colocar em alto relevo o crucial problema da liberdade humano, do destino humano, do mal igualmente. A narrativa de David enfatiza a relação amorosa com Eleonora, a paixão incontrolável por Crisálidas, os sonhos descabidos, a ida ao Bordel numa noite tediosa e de calor intenso. Por trás de tudo isso trabalha a problemática do mal e do destino: lócus amoenus , lócus horrendum dão no mesmo, neste respeito, quando se trata de Deuteronômio. Passando por cima de diversos outros marcos pecaminosos, chegamos novamente à queda crucial. Entrou no palco textual quando os Bandidos decidiram matar o padre. Este fugiu, sob uma rajada de balas, num bosque. Ficou seriamente ferido e pendurado num ramo de árvore pelas suas roupas, antes de cair desmaiado num buraco fundo, quebrando a perna Por chance, os bandidos o estimando morto se mandaram No despertar, sentiu que havia quebrado a perna. O que complica a sua sobrevivência num lugar de onde não existe possibilidade de serem ouvidos os seus gemidos. Sua angustia de morrer aumentou ao olhar lá em cima nas árvores mais altas um bando de urubus que batiam alegremente as asas ao cheirar provavelmente o seu sangue. Passaram dias e dias sem água e sem comida. `

Pulo sobre os detalhes dessa agonia durante a qual o Padre recapitulou mentalmente a sua vida, fez um balance entre perdas e ganhos. Um dia onde excepcionalmente a Natureza estava em sua melhor roupagem e muito convidativa, ao correr atrás de uma ave, aquele jovem bóia frio chamado Menino (o seu filho ainda desconhecido), caiu por puro acaso no mesmo buraco mas sem se ferir e a um nível menos profundo. Era o dia da salvação. Deuteronômio remontará dos infernos quase inconsciente, sem saber identidade de seu salvador. Esta foi a maior e a última grande queda de ordem física. Mas coroando as anteriores, ela lhes conferirá a sua plena significação, graças principalmente à anamnese, o doloroso exame de consciência facultado por dias de imobilidade e de desespero. Esse monólogo interior de Deuteronômio entre a vida e a morte merece uma leitura detida. Mas não é apropriado fazê-la agora.

Antes de chegar a esse texto capital e de tão grande relevância simbólica para o sentido da trajetória do personagem e portanto do livro no qual ele está em papel de protagonista, convém explorar primeiro os lugares de emergência das imagens qualificadas por Ricoeur de poéticas.A esta categorias pertence as imagens as simbólica do Mal. Aqui surge um grande problema: o que pode ser essas imagens? Pois o autor, não sendo o Espírito Santo, não pode comunicar conosco sem passar por signos, sinais, imagens como meio de transmissão.

É toda a nossa concepção de imagem e de mito que está aqui implicada. Dizem que o mito é uma narrativa que possa servir de meio de transmissão daquilo que dizíamos, no começo, é inaudível e incorpóreo. Portanto, se as articulações temporais e espaciais, mais os personagens e as suas ações constituem um mito, não fica ainda claro para nos como vamos identificar a metáfora, o símbolo que ele apresenta sem representar. Se tudo é palavra, a imagem poética é uma palavra; enquanto tal, remete a um referente que, pela definição ricoeuriana, deveria paradoxalmente desprovida de remissão externa.. Isso nos leve a uma analogia como os mitos gregos. Como se referencializaram naquele tempo? A não ser fantasias tornadas crenças, como procederam com seus deuses deusas, ou quando falaram do Centauro Quiron?

Será que os Gregos tomaram realidade como crença, e crença por realidade, eles que criaram filosofia e ciência? Chamo a atenção aqui sobre o livro do famoso mitólogo francês Jean-Pierre Vernant (que não li): Les Grecs ont-ils cru à leurs mythes/ Será que os Gregos acreditaram em seus mitos?

Vamos admitir provisoriamente a hipótese de que , assim como as imagens poéticas, as crenças, a fé vem antes de mais nada de dentro, as referencias externas como as estátuas, os templos aos deuses ou deusas só vem depois. É por acreditar primeiro neste deus ou nesta deusa certos fieis lhe dedicaram um templo. Diria também que lhe atribuíram um NOME.

Chegamos mais uma vez ao campo da palavra que dá sustentação ao cenário mítico. E novamente voltamos a ser perplexos.. Estamos nos perguntando mais uma vez: existe palavra a-referencial para liberar o mito ? Como vou identificar a imagem do mal enquanto imagem-palavra, quando deixo de me apoiar nos signos da natureza e nas percepções oníricas, como eu fiz para o Sol, a chuva/ água, os elementos?

Ricoeur deu uma dica ao deixar a entender que as palavras “sujeira, carga, desvio” não traduzem o inominável da falta, do pecado, da culpabilidade. Portanto o mal, que as subjaz não acede à dizibilidade. Só valem estes termos como remotíssima analogia. Entretanto, assim como o símbolo, a analogia está comprometida com algo que conhecemos e que aponta para algo que não conhecemos e que não podemos exprimir. O “mal” não seria esse Diabo ou esses diabinhos que vem assediar a mente de Deuteronômio amante, Deuteronômio seminarista, Deuteronômio padre? Um ser sem corpo, sem identificação referencial ou ponto de remissão na realidade nossa, mas que, apesar de tudo, a arte de escrever, de construir mitos torna presente fisicamente, faz existir e se movimentar sob nossos olhos, faz falar ao nosso ouvido, faz proferir cadeiras de enunciados, atribuindo-lhe no âmbito das linhas e parágrafos posturas enunciativas, ferrenha competência argumentativa e habilidade impar de polemista. Evidentemente, a magia do escritor conta com as crenças do leitor, assim como ocorreu provavelmente com os narradores de mitos na Grécia antiga.

ADDENDUM À APOSTILA ANTERIOR PARA 10/05/2010

Para avançar um pouco no debate, retomamos o pressuposto emitido no término de nossas considerações sobre o xamanismo, a saber que os lugares por excelência para se observar as imagens poéticas são provavelmente as passagens d´O Sol dos Trópicos onde o diabo dialoga com Deuteronômio e também monta um cenário de circo para assediar a mente de Tonico infante e guiar sua mão, sua boca, seu corpo no caminho do crime, com o super-apoio da mãe do menino já possuída há lustres pelo espírito do Mal.

io.

No entanto, outras interpretações são possíveis. Penso em particular à hipótese da testemunha interior. Já disse que o psicanalista Jean-François Chiantaretto a desenvolveu em um livro inteiro ( Le témoin interne.PUF,2005). `Para este psicanalista o testemunho interior seria”uma figura intrapsíquica representado o olhar do outro, sendo este outro a instância que confere existência ao sujeito humano.”. Jacques Lacan por seu lado postulava um grande outro que rege a nossa entrada na linguagem e presidia a nossa investidura de sujeito, de ser social. A essas hipóteses assaz parecidas emas diferentemente orientadas em sua intencionalidade, se junta uma outra de raiz fenomenológica, orientada para a escritura do eu poético e do eu narrativo.Foi formulada em termos assaz parecidos pela estudiosa Claudie Gagné, em um trabalho sobre os poetas Paul Celan e Henri Michaux intitulado “A partir de Celan et de Michaux: Le soi traversé par l´Autre” (In Jean Leclercq et Nicolas Monseu,dir., Phénoménologies littéraires de l´écriture de soi.Dijon:´Rditionns universitaires de Dijon,2009,p.158). Depois de defender a idéia de que “o sujeito é um efeito de escritura”, que tem sempre “de l´autre”/ um outro obrando no falante, que há sempre o peso do inconsciente operando no ato de fala, Claudie Gagné conclui que a alteridade está presente “na tessitura polifônica da linguagem” dos sujeitos de fala, que só posso dizer “eu” “na medida em que me situo em um face a face com um Outro internalizado com que eu me constituo em parceiro de diálogo, um outro que por sua vez me devolve essa parte de estranheza e de desconhecido que existe em mim”. Assim encarado os diálogos entre Deuteronômio ou o menino Tonico e o diabo, são uma magistral teatralização da consciência ética destes personagens e uma ilustração dostoievskiana e bakhtiniana da pluralidade de ser dentro de uma mesma voz. É um evento lingüístico e retórico que exibe na externalidade de uma construção dialógica aquilo que de fato é o monólogo de uma mente em sua pluralidade de facetas discursivas e de posições opositivas ocorrendo na simultaneidade. O múltiplo está no Um, e a justaposição de dizeres é apenas uma pedagogia instituída pelo ficcionista para fazer sentir ao seu leitor o drama da consciência num determinado instante de sua vida. A teatralização se inspira nas cenas forenses. Um tribunal reúne os traços distintivos que são: um espaço, um arbitro, um litígio, juízos opostos colocados no fiel da balança, etc. A arte narrativa de David Gonçalves arrola tudo isso. Os seus diabos são apenas hipóstases da consciência moral instituindo uma sorte de tribunal interior no mais íntimo do ser humano, no qual atuam advogado de defesa e advogado da acusação ou procurador chamado vulgarmente “advogado do diabo”. Trata-se implicitamente do debate teológico sobre a liberdade humana, como Ricoeur soube o colocar assim como Leibnitz. E a decisão a tomar é dilacerada entre as forças da Liberdade e da Necessidade. Mas in concretum a necessidade simbolizada pelas pulsões, pela carne parece levar sobre uma vontade fragilizada por uma culpa ancestral reatualizada nos atores da sociedade de Quadrinculo que são interpretativamente actantes de uma tragédia humana de maior alcance. O apostolo Paulo já tem pautado e traduzido isto numa dialética: “a carne milita contra espírito e o espírito milita contra a carne. Áie de nos !!! nesta interminável guerra se o Espírito Santo não vier nos socorrer .” O fato é que mesmo com este socorro, a liberdade como faculdade de escolher fica. Por isso, existem sujeitos como o facínora Tônico no enredo do Sol opta por seguir o ditado das pulsões mais negativas ao passo que Deuteronômio optou finalmente pelo triunfo das pulsões positivas. Com este, que é o protagonista do SOL dos TRÓPICOS, o desfecho da história é de esperança, de vitória do espírito do bem, - uma mensagem de esperança, mesmo para os bóias frias num tempo por vir, numa utopia do social.

Este finale se assemelha àquele que a ópera goetheana Faust, nos prepara na próxima leitura deste curso.

No entanto, o destino cruzado de Deuteronômio e de Eleonora deve provavelmente lembrar a certos leitores O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz: de um lado, um jovem padre e do outro um seminarista; de ambos os lados uma bela moça..Mas houve recusa do aborto sugerido por Deuterônomio por parte de Eleonora que pagou com sua vida o nascimento do filho, ao passo que o aborto planejado por padre Amaro aceito a contra-gosto pela sua amada acabou pela morte desta. O que mais nos interesse é arrependimento final e o feliz reencontro no desfecho entre Deuteronômio arrependido e seu filho bóia-fria, a sua ruptura radical com o mundo dos Poderosos e bem abastados, ao passo que o Padre Amaro sempre protegido pela alta sociedade se juntou ainda mais a ela ao voltar para a capital Lisboa. Portanto, David Gonçalves não reescreve Eça de Queiroz sem uma belíssima traição que consiste em um salto de gigante conscientização social, contemporânea das empresas do Abade Pierre na França e dos Teólogos da libertação no Brasil.

Programação:

Da página 5 até a página 292, fora lido o essencial.

Resta a CADA UM percorrer o indispensável da página 292 até 387, e preparar um comentário para a aula de 10 de maio.

A Aula de 3 de maio está cancelada, a fim que sejam cumpridos comentário e leitura final.

Obrigado.

Professor Sébastien.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Poética do Imaginário, Aplicação.


A aula-seminário de 19 de abril começou por uma rápida informação que eu trouxe sobre a relação entre “Xamanismo e Literatura” e sobre a reescritura.
A re-escritura é o processo da Mitopoética ou Mitologia Comparada ou Poética comparada. É uma investigação que começa todas as vezes que na leitura do texto registramos ou suspeitamos a presença de um mito já divulgada pela História cultural do Ocidente ou do Oriente. Abrimos aqui um parêntese para dizer que isto não impede, na ausência deste reconhecimento ou desta suspeita e no fim de uma leitura atenta, emitir a hipótese de um mito inédito em construção na dinâmica de um processo de escritura. Segundo Fabio Josgrilberg (Cotidiano e Invenção. Os espaços de Michel de Certeau. São Paulo: Escrituras, 2005,p.50),uma tal hipótese vai ao encontro do pensamento de Michel de Certeau, Pois, para o grande historiador e pensador francês, na modernidade a escrever se tornou uma atividade mitizante, uma construção de mitos, embora tradicionalmente tivessemos reservado a palavra mito para o gênero narrativo. No entanto, devemos admitir com Bachelard a presencia subjacente de uma narrativa, de um mito potencial em um grande número de palavras associadas a uma ação, à uma irradiação (dançar,rir, plantar) ou mesmo certos substantivos ( fogo, água, ar, terra) aos quais acrescentamos “flor” com o poeta Mallarmé,Mais ainda, refletindo sobre a tríade nocional “Schème, Type et Archétype”, (In Questions de Mythocritique, D. Chauvin, A. Siganos, Ph. Walter,org.Paris, Imago,2005,p.307-317),Laurent Mattiussi confirma o grosso modo o pensamento de De Certeau na passagem (p.313) onde ele declara que, desde Mallarmé, “a literatura retoma por sua conta própria os procedimentos de tipificação que constam no mito”.
Fechando o parêntese, para voltar à modalidade tradicional de aparição do mito, para indicar mais uma vez o caminho interpretativo que se empreende logo que sua presença foi detectada. Procedemos a uma genealogia nietzscheana (Genealogia da moral) ou uma arqueologia foucaultiana (Arqueologia do saber) com base na História literária/cultural e na História social, depois de uma familiarização preliminar com as de análise de Gastón Bachelard, Gilbert Durand, Mircea Eliade, Paul Ricoeur, Ernst Cassirer,Jean-Jacques Wunenburger, Harold Bloom (The anxiety of influence), Antoine Compagnon (O trabalho da citação),a noção de Palimpsestes de Gérard Genette, de re-escritura tal como foi observada em J-L. Borges, assim como certas idéias de Freud-Lacan sobre a “reprise”/ a retomada, a abordagem alegórica de W. Benjamin. Dispomos assim de uma ampla gama multidisciplinar de recursos no horizonte de uma tal pesquisa. Pessoalmente consideramos este gênero de estudos no domínio da Literatura Comparada, quando se toma o rumo tradicional, e no quadro da Poética na acepção aristotélica, quando adotamos a perspectiva de De Certeau e de Mallarmé. No que diz respeito à oportunidade deste tipo de investigação no Brasil, remetemos ao capitulo de Benedito Nunes “Volta ao mito na ficção brasileira”(B. Nunes, A clave do poético.Org. de Victor Sales Pinheiro. São Paulo:Companhia das Letras,2009, p.289-302).(Esta na Casinha, e junto com apostila sobre os Mitos cósmicos tirado da Dissertação Refém da Infância)

Sobre “Literatura e Xamanismo”,
,de que falamos muito rapidamente na aula anterior.

Num volume de homenagem dedicado pela casa editorial parisiana Cahiers de L´Herne ao famoso especialista da Mitologia e Historiador das religiões o romeno Mircea Eliade, o estudioso Jean Biès apresentou um esquema em três partes para investigar este tema, principalmente na poesia.
Convém primeiro estudar o processo de INICIAÇÃO no ato de escrever ou no ritual da escritura. Lembro-me ter lido muito anos atrás dois livro relacionados com este aspecto: Paul Bénichou, Le sacre de l´écrivain; sobretudo, Claude Abastardo,Mythes et rituels de l´écriture. O poeta ou o escritor recebe na vertente da iniciação uma investidura que o põe à margem sem o separar da sua comunidade (cf. o poema “O´albatros”, do volume As Flores do Mal de Charles Baudelaire. Ele endossa uma função de “ser-de-fala”, de sujeito que profere uma palavra-energia suscetível de domar forças do universo ainda mal conhecidas, vale dizer ele detém um poder de “cura pela fala” (expressão de Anna O., a primeira paciente na história da Psicanálise). Uma transcendência pela fala e também pelo gesto que a acompanha. Um dos comentarista de Michel De Certeau,o poeta e crítico literário francês Michel Deguy declara a respeito desta transcendência mediada por uma fala similar à fala mítica que se trata de “uma posição supra-sensível de onde o sensível é visto, dominado até um certo ponto” (Note sur Le syntagme “Fable mythique. In Rue Descartes,Revue Du Collège International de Philosophie, N. 25,1999, p.45)
Em segundo lugar, é preciso examinar o que se chama “a ABSTENÇÃO DOS PODERES”, pois o xamã é um ser depreendido, é pela sua distancia o imediatismo, pela renuncia a todo controle em prol de si mesmo que ele escapa ao karma deste mundo.
Esta disponibilidade total conduz a uma possibilidade de comunicação com o transcendente, uma chance de ser investido ,graças à uma receptividade máxima, por vozes de diversas proveniência.. Decorre disto a capacidade de particular de ouvir, de perceber de um modo transcendente, como numa situação de êxtase. E isso se chama INSPIRAÇÃO. Tudo se passa como se ao renunciar a tudo que é imediato, ao voar por cima de mundo material, o xamã ganha o privilégio de uma segunda visão, uma perceptividade de alcance maior. Ela consegue assim a por em conexão realidades aparentemente desconexas. A abrir mão de toda ambição de dominação imediata se eleva a uma outra forma de subjugação dos males deste mundo,
Reparei em seguida nos poemas que José Juvio me comunicou uma saturação de imagens da natureza, de rituais de encaminhamento para a êxtase, mediante um sobrepujar-se do peso da gravidade, a presença de pássaros muitas vezes metonimizados pelo vocábulo “asas”, ou por objetos técnicos como o avião.
O mais interessante é que essa leitura cursiva me ajudou a descobrir uma função xamánica não apenas em toda poesia, mas no poético como liquido amniótico em que banha toda obra literária e artística significativa, como O SOL dos TRÓPICOS, de David Gonçalves. Obra marcada pela poesia nos toques descritivos sobre a natureza, nos lampejos enunciativos sobre a poesia canção, sobre a parte idílica dos encontros amorosos, obra marcada também pela tragédia do amor não partilhada, cálculos traiçoeiros e sórdidos que desmoronam toda uma vida. Mas na tecla xamánica, notamos que o artista poeta transporta o seu público para uma realidade que faz esquecer a miséria deste mundo: ele é portanto um xamã curador. Mas por um engano cruel, na tecla irônica dos primeiros capítulos do romance de O SOL dos Trópicos padre Deuteronômio exerce também essa função: duas ou três vezes, ele foi chamar na mansão de Pasternak para aliviar a sua filha Crisálidas de um mal misterioso. Seria interessante ler pelos detalhes os capítulos onde Deuteronômio, foi acolhido e recebeu uma investidura xamánica: ele é preferido no lugar de um médico tradicional, ele é cumprimentado, festejado como um verdadeiro mago pelos resultados sem nada comparáveis que seus “passes mágicos” conseguem, uma vez que o mal não é coisa material mais coisa da alma. Entretanto o leitor está sabendo que, longe de ser um santo, Deuteronômio é o lobo no redil.
São alguns elementos que deixaremos de explorar a fundo para não desviar do propósito de encarar de frente a simbólica do mal. O beneficio é de nos fazer entrever a presença em Crisálidas de um mistério do mal que, se não fosse psicossomático, pode bem escapar ao olho nu e fugir do alcance das realidades nomeáveis pelas palavras de nossa enciclopédia. Quando isso acontece, o ficcionista, mais habilidoso do que os teólogos, se transforma em poeta e em narrador que entre em êmulo com os narradores bíblicos, inventando cenários, personificando, corporificando, tornando tangível, audível, familiar, aquilo que é puro espírito, intocável, e inaudível. Estamos em pleno mistério da trans-substanciação poética. mesmo se tivéssemos a ingenuidade de pensar que efetuamos uma leitura literal. É uma oportunidade para mim de corrigir o lingüista dinamarquês Louis Hjelmslev: o sistema lingüístico primeiro que ele imaginava servir de escadinha para um sistema modelizante de segundo grau chamado Literatura passa de fato a ser coincidente com o primeiro. Re-esquentaremos essa problemática mais adiante.
Para servir de lembrete: são três as vias de investigação no domínio: do xamanismo poético. São designadas por três expressões-chaves: I) Iniciação, II) Abstenção dos ´poderes, III) Inspiração( Jean Biès, Chamanisme et littérature. In Mircea Eliade. Cahier de L´Herne. Paris. Editions de L´Herne. Biblio-Essais, 1978.)


Seminário do dia 26 de abril
No dia 12 de abril , temos iniciado uma leitura da Simbólica do mal no romance O Sol dos Trópicos de David Gonçalves.
Comecei por umas palavras sobre a intriga. É a história de um padre que atravessa uma grande crise moral. Seus desejos carnais, as aventuras e dilaceramentos morais que disto decorrem além de seu desentendimento com o seu superior o Bispo, disputam o espaço das 4oo páginas do romance com a temática social dos Bóias Frias lutando para trabalhar, ter um salário justo, uma vida decente.
Falei do quadro físico, do predomínio das imagens cósmicas, em primeiro lugar do sol e com ele do calor excessivo que se traduz em imagem de suor, de mau cheiro concomitante à miséria física. Até a chuva fica na decorrência do sol de chumbo, pois não alivia a atmosfera castigadora. Mas no desvio de uma página podemos depararmos com uma aurora ou um fim de tarde bonito como uma benção repentina da Natureza num meio dominado pela violência: a história é salpicada de autoritarismo, de brigas, de linchamento, de assassinato seguido consumo de carne humana em um ambiente de festas, de dança e de bebedeira. Essa exacerbação pelo alto é uma transposição na ordem moral do arquétipo do Fogo aliado ao SOL quase sempre ao seu zênite.Pelo baixo a exacerbação é de um estado de miséria, de esmagamento, de desprezo a nível quase absoluto que cai dos poderosos (Fazendeiros, Banqueiros, Bispo e Arcebispo, Políticos) sobre os bóias frias, os pequenos lavradores, os meninos de um orfanato. O mito solar tem recebe reforço por parte da geometria que está no nome da cidade: Quadrínculo, lugar onde estão enjauladas as vítimas do Poder que bota fogo nelas. Quando há interlúdio de chuva, nada faz para atenuar este fogo infernal.
No final, o Padre Deuteronômio abandonará o convívio da Igreja, dos Grandes do pedaço, para um destino de proletário, mas saindo da jaula de Quadrínculo lado ao lado de seu filho reencontrado entre os boias frias. Pois, um dos grandes dramas de sua vida tem sido o abandono na volta ao Seminário de uma moça (Eleonora) e do filho que resultou da aventura amorosa com ela. A mãe morreu, o filho foi para um orfanato desconhecido. E quando reapareceu no cenário será para resgatá-lo milagrosamente do inferno de Quadrinculo. O como deste resgate foi mediado por uma operação espacial imaginário que consiste na “mise em abime” de Quadrínculo. No começo da História o padre tem chegado de um outro lugar , de uma outra paróquia de onde foi afastado pela ordem do Bispo por ter cometido o pecado de ter-se aliado aos boias frias. Foi a queda num primeiro buraco, pois o castigo consiste em ser mutado de um lugar bom de se viver para um buraco, no sentido popular da palavra. Aí, vai se repetir a mesma falha haja vista o peso do nome do herói sobre seu destino: na ficção o nome é o destino, assim como o sexo. Seja dito de passagem, nesta ficção em particular onde triunfa o poder patriarcalista, as três jovens Eleonora, a prostituta da casa de Madame Consuelo, Crisálidas (filha do poderoso Pasternak) foram humilhadas e ofendidas, duas se suicidam uma sai do cenário depois de ter escapado a um assassinato. Belo bilã ficcional. Mas por vezes coincidem real e ficção:as delegacias de Mulheres são afogadas sob o excesso de queixas. Deuteronômio caiu, dissemos numa cidade-paróquia que além de simbolizar a sua fidelidade na função deuteronômica (ajudar os necessitados que são as bóias frias) simboliza para ele um buraco múltiplo. Vale a pena acompanhar pari passu, isto é, passo a passo, os diferentes lugares por onde ele principalmente transitou nesta cidadezinha. Paul Ricoeur facilita a nossa leitura ao distinguir três tipos de imagens na sua poética dos símbolos: as imagens cósmicas, as imagens oníricas, as imagens poéticas. As primeiras repousam nas realidades e fenômenos da Natureza, que Bachelard soube genialmente explorar. Já entrevemos a função simbólica do sol tropical. Sua presença ubíqua traduz um mal-estar físico num nível primário , afim de orientar o leitor ao sentido latente, metafísico que penetra o ambiente, manipula as mentes, anima os corpos, os braços para matar, cortar , esquartejar, linchar ( o assassinato do homem que virou churrasco, a prostituta da Casa de madame Consuelo sob a faca do facinora Tonico) ; o sol, seu calor excita os desejos para desafiar a lei moral ou juramento de padre, ele também pode desanimar, seu excesso pode desmoralizar, tornar apático e sem força para cumprir o dever ( o padre manda o seu sacristão atender os fieis em seu lugar). Entretanto, a história demonstra também que roda imagem é ambivalente. O mesmo sol, a mesma natureza que mata sabe vivificar ,Cá e acolá, no desvio de uma página do romance, pinta o sol duma aurora bonita, dum crepúsculo insólito se tornar convidativo e cúmplice de uma euforia que ritma as paixões de amor, encoraja Eleonora a acreditar loucamente que poderá desviar da sua corrida ao altar o seminarista Deuteronômio. O mesmo acontece com Crisálidas: por que não ficar comigo namorando para sempre nesta decoração que a Mãe Natureza preparou para nos; joga no lixo a batina e as babaquices da Igreja! Deu o que deu: a queda num buraco moral.
Chegamos assim às imagens oníricas.
Elas vão acentuar a queda por uma transferência do cenário externo no interior da psique do personagem. O mal vira menos palpável, por que ele elege domicilio dentro do ser, se alimenta pela sua própria energia interna. Assim o buraco de tal “locus amoenus” identificado lá fora na Natureza e a dança do desejo que ele suscitava nos namorados, passa na narrativa a ter construções paralelas numa outra cena. Nos sonhos, entregue a si mesmo e à fúria da fantasia e do desejo, Deuteronômio gozou de vários sonhos hiper-eróticos indignos de um padre: mais uma queda, em buracos invisíveis desta vez.O mais significativo sonho de Crisálidas descrito na narrativa se efetuou num “locus horrendum”. Foi talvez um pesadelo, a não ser um modo disfarçado de autopunir-se ou de gozar masoquistamente. Aconteceu numa parte do enredo onde o amor de Deuteronômio resfriava e desabava. Os elementos mundanos que intervém no cenário interno da psique são emprestados da noticia televisiva de um Deuteronômio refém de bandidos perigosos. O que reforçou o medo da perda do amado. As imagens oníricas de violência sobre a pessoa do padre, de brutal estupro de Crisálidas repetido por cada um dos facínoras apontam talvez em duas direções: de um lado,a compensação de desejo reprimido e em perda da intensidade antes experimentada; de outro lado, a premonição da saída total e odiosa do padre da sua vida de menina ameaçada pela loucura. Este sonho sanciona o desastre de uma vida que deu uma guinada em direção daquilo que sua recalcada educação cristã denominou de inferno.
Para Ricoeur, como para Wunenburger, o que seriam as imagens poéticas deve jorrar como as imagens divinas ou as da profecia da profundidade do ser. Normalmente, elas rompem radicalmente com a exterioridade. Portanto, são imanentes. A imagem onírica se abastece na fantasia e naquilo que se chama “restos diurnos”, ou seja, fatos da vida cotidiana anteriores aos sonhos, eventos de que fomos testemunhas ou que nos foram reportados, como por exemplo pela Televisão. No caso do pesadelo de Crisálidas, a noticia mostrou o seqüestro do pai e do padre (A associação dessas duas figuras paternas, o segundo em posição de xamã no texto, daria lugar a considerações psicanalíticas em que não entraremos aqui). O buraco físico, o buraco máximo posto em abismo na situação do padre, só aparece perto do fim do enredo. Mas é oportuno antecipá-lo agora , pois ele concerne à nossa reflexão sobre a natureza das imagens poéticas. Aliás, Ricoeur não coloca divisão estanque entre suas três categorias de imagens. As duas primeiras (as cósmicas e as oníricas) são comprometidas as primeiras inteiramente, as segundas parcialmente com algo de físico, Contudo mantém uma relação misteriosa com as terceiras, as imagens poéticas, que são em principio irreferenciais, sem relação com a exterioridade. Quando se trata da Falta ou da Queda humana, ou seja, da Simbólica do mal, estamos falando de tais imagens transcendentes, cale dizer inacessíveis á razão, à explicação. O mito providencia a compreensão, não a explicação, segundo uma distinção cara à Hermenêutica de Paul Ricoeur.

Vamos descer a algo mais concreto antes de perseguir a natureza dessas imagens poéticas e míticas.
Ousaríamos avançar que a trajetória de Deuteronômio exibe uma sucessão de quedas que se iniciou com a entrada no seminário e que teria seu ponto mais baixo (e não de apogeu, se tratando de buraco) naquela queda que anunciamos há pouco como sendo o buraco mais profundo. Esta sucessão de passos em falso começou pela entrada no seminário de um rapaz ingênuo; ele não tinha a vocação religiosa, só um concurso infeliz de circunstancias o empurrou para onde não devia. Essa primeira mancada será seguida de muitas outras menos notáveis, mas que todas concorrem a colocar em alto relevo o crucial problema da liberdade humano, do destino humano, do mal igualmente. A narrativa de David enfatiza a relação amorosa com Eleonora, a paixão incontrolável por Crisálidas, os sonhos descabidos, a ida ao Bordel numa noite tediosa e de calor intenso. Por trás de tudo isso trabalha a problemática do mal e do destino: lócus amoenus , lócus horrendum dão no mesmo, neste respeito, quando se trata de Deuteronômio. Passando por cima de diversos outros marcos pecaminosos, chegamos novamente à queda crucial. Entrou no palco textual quando os Bandidos decidiram matar o padre. Este fugiu, sob uma rajada de balas, num bosque. Ficou seriamente ferido e pendurado num ramo de árvore pelas suas roupas, antes de cair desmaiado num buraco fundo, quebrando a perna Por chance, os bandidos o estimando morto se mandaram No despertar, sentiu que havia quebrado a perna. O que complica a sua sobrevivência num lugar de onde não existe possibilidade de serem ouvidos os seus gemidos. Sua angustia de morrer aumentou ao olhar lá em cima nas árvores mais altas um bando de urubus que batiam alegremente as asas ao cheirar provavelmente o seu sangue. Passaram dias e dias sem água e sem comida. `
Pulo sobre os detalhes dessa agonia durante a qual o Padre recapitulou mentalmente a sua vida, fez um balance entre perdas e ganhos. Um dia onde excepcionalmente a Natureza estava em sua melhor roupagem e muito convidativa, ao correr atrás de uma ave, aquele jovem bóia frio chamado Menino (o seu filho ainda desconhecido), caiu por puro acaso no mesmo buraco mas sem se ferir e a um nível menos profundo. Era o dia da salvação. Deuteronômio remontará dos infernos quase inconsciente, sem saber identidade de seu salvador. Esta foi a maior e a última grande queda de ordem física. Mas coroando as anteriores, ela lhes conferirá a sua plena significação, graças principalmente à anamnese, o doloroso exame de consciência facultado por dias de imobilidade e de desespero. Esse monólogo interior de Deuteronômio entre a vida e a morte merece uma leitura detida. Mas não é apropriado fazê-la agora.
Antes de chegar a esse texto capital e de tão grande relevância simbólica para o sentido da trajetória do personagem e portanto do livro no qual ele está em papel de protagonista, convém explorar primeiro os lugares de emergência das imagens qualificadas por Ricoeur de poéticas.A esta categorias pertence as imagens as simbólica do Mal. Aqui surge um grande problema: o que pode ser essas imagens? Pois o autor, não sendo o Espírito Santo, não pode comunicar conosco sem passar por signos signos, sinais, imagens como meio de transmissão.
É toda a nossa concepção de imagem e de mito que está aqui implicada. Dizem que o mito é uma narrativa que possa servir de meio de transmissão daquilo que dizíamos, no começo, é inaudível e incorpóreo. Portanto, se as articulações temporais e espaciais, mais os personagens e as suas ações constituem um mito, não fica ainda claro para nos como vamos identificar a metáfora, o símbolo que ele apresenta sem representar. Se tudo é palavra, a imagem poética é uma palavra; enquanto tal, remete a um referente que, pela definição ricoeuriana, deveria paradoxalmente desprovida de remissão externa.. Isso nos leve a uma analogia como os mitos gregos. Como se referencializaram naquele tempo? A não ser fantasias tornadas crenças, como procederam com seus deuses deusas, ou quando falaram do Centauro Quiron?
Será que os Gregos tomaram realidade como crença, e crença por realidade, eles que criaram filosofia e ciência? Chamo a atenção aqui sobre o livro do famoso mitólogo francês Jean-Pierre Vernant (que não li): Les Grecs ont-ils cru à leurs mythes/ Será que os Gregos acreditaram em seus mitos?
Vamos admitir provisoriamente a hipótese de que , assim como as imagens poéticas, as crenças, a fé vem antes de mais nada de dentro, as referencias externas como as estátuas, os templos aos deuses ou deusas só vem depois. É por acreditar primeiro neste deus ou nesta deusa certos fieis lhe dedicaram um templo. Diria também que lhe atribuíram um NOME.
Chegamos mais uma vez ao campo da palavra que dá sustentação ao cenário mítico. E novamente voltamos a ser perplexos.. Estamos nos perguntando mais uma vez : existe palavra a-referencial para liberar o mito ? Como vou identificar a imagem do mal enquanto imagem-palavra, quando deixo de me apoiar nos signos da natureza e nas percepções oníricas, como eu fiz para o Sol, a chuva/ água, os elementos?
Ricoeur deu uma dica ao deixar a entender que as palavras “sujeira, carga, desvio” não traduzem o inominável da falta, do pecado, da culpabilidade. Portanto o mal, que as subjaz não acede à dizibilidade. Só valem estes termos como remotíssima analogia. Entretanto, assim como o símbolo, a analogia está comprometida com algo que conhecemos e que aponta para algo que não conhecemos e que não podemos exprimir. O “mal” não seria esse Diabo ou esses diabinhos que vem assediar a mente de Deuteronômio amante, Deuteronômio Seminarista, Deuteronômio Padre? Um ser sem corpo, sem identificação referencial na realidade nossa, mas que, apesar de tudo, a Arte de escrever ou seja, de construir mitos, torna presente fisicamente, faz existir e se movimentar sob nossos olhos, para nosso ouvido, mediante o palavras enunciadas, posturas enunciativas, deslocamento espacial no âmbito das linhas, dos parágrafos, dos marcos de diálogo, da argumentação. Evidentemente o mágico escritor conta também com as crenças do leitor, como ocorreu provavelmente no mundo da Grécia Antiga.
Para avançar um pouco, no debate, retomamos o pressuposto emitido no término de nossas considerações sobre o xamanismo, a saber que os lugares por excelência para se observar as imagens poéticas são provavelmente as passagens d´O Sol dos Trópicos onde o diabo dialoga com Deuteronômio e também monta um cenário de circo para assedia a mente de Tonico infante e dirigir sua mão, sua boca, seu corpo no caminho do crime, com o super-apoio da mãe do menino já possuída há lustres pelo espírito do Mal.

Programação:

Da página 5 até a página 292, fora lido o essencial.
Resta a CADA UM percorrer o indispensável da página 292 até 387, e preparar um comentário para a aula de 10 de maio.
A Aula de 3 de maio está cancelada, a fim que sejam cumpridos comentário e leitura final.
Obrigado.

Professor Sébastien.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Encontros sobre Poética do imaginário

Sébastien Joachim

De 15 de março ao 21 de junho 2 010.

Renovo as boas vindas do primeiro encontro. Fecho o seminário sobre apenas um aspecto da Poética do Imaginário, a exemplo deste professor de Poética Contemporânea, um italiano convidado pela Université de Nice ( Nice Sophia-Antipolis) que limitou a sua disciplina ao essencial . Na conjuntura ele optou por estudar apenas entre dez títulos da sua bibliografia a Obra Aberta de Umberto Eco, um livrinho que reuniu aquilo que ele achava fundamental de discutir em nossos temos em vez de remontar até ao romantismo e de efetuar um sobrevôo de lá até os nossos dias. Ora, o mito das Origens que escolhi, por trás da Poética do Mal, é algo que se revela muito atual se consultarmos os acontecimentos cotidianos tanto no mundo da vida quanto no mundo das Artes e Literatura.

..

Procedemos em cada encontro em um incessante ir e vir sobre essa temática cujas imagens nos cercam por todos os lados...

Do ponto de vista metodológico, o que queremos frisar é uma a Poética e Estética do Mito que se escreve e se interpreta em um Hoje incessantemente renovado mediante um gesto instauração ou de restauração daquilo que JÁ HAVIA SIDO em um dado momento de nosso passado cultural. No âmbito de nossa disciplina, entendemos por cultura toda a soma de determinações que incidem sobre a nossa existência individual e coletiva sem, porém, anular a nossa liberdade de escolher e de recriar. Fernando Oliveira tem pensado neste horizonte na sua brilhante intervenção sobre Osman Lins na primeira Aula. Igualmente, na segunda aula quando declarou que Todos os escritores, e não apenas Borges são re-escritores. È algo sobre o qual voltaremos a nos repetir incansavelmente. Até por que o exercício crítico sobre o qual repousa o seu grau de Mestre e de doutor não passa disto, e que dependerá de cada qual fazer dele uma péssima colcha de retalhos ou uma realização criativa, e neste último caso um trabalho institucionalmente transgressivo.

.Volto e voltarei a frisar que a Mitopoética se concretiza numa prática sensível, prudente, fundamentada historicamente, de re-escritura.Você deve procurar refinar a sua leitura do mito com uma pesquisa de História literária e de História cultural dos mitos ao consultar a Antropologia cultural, a História da Arte, a História das religiões (cf. Mircea Eliade, História das religiões), estudos sobre o sagrado ( Rudoph Otto, Antônio Carlos Magalhães, cf. vide Sagrado na Internet e no Wiki e em catálogo de Livrarias ou Editores pelo Web), Dicionários de Civilização grego-romana, Dicionários de Mitos Literários tais como o de Pierre Brunel et alii..Também alguns Filósofos como Ernst Cassirer, Filosofia das formas simbólicas, particularmente o segundo dos 3 volumes.. São passos preliminares destinados a estabelecer o situs, o lugar de germinação, do surgimento, a etiologia do mito. Em outros termos, assim como veremos no caso do Mito de Faust (um mito do Mal),trata-se de identificar os prováveis lugares por onde apareceu o mito de que você suspeita a presença em tal livro ou objeto de arte que está lendo ou estudando. O passo seguinte consistirá em acompanhar a travessia do mito identificado em suas fases intermediários de transformação, da versão inicial disponível até a versão atual que você suspeita estar trabalhando por baixo ou em diversos níveis da obra em leitura ou em estudo (forma de composição, rede de imagens, motivos e temas, personagens e espaços, situações oscilando entre o já visto e o nunca visto, jogos por vezes desconcertantes sobre a temporalidade entre o antes e o depois, o outrora e o presente, o agora e o futuro, ou mesmo entre o tempo e a eternidade ou o intemporal. Estamos no reino do imaginário, ou seja, de todos os possíveis. Para não alongar a pesquisa em demasia, é preciso por vezes delimitar fronteiras temporais ou regionais. Por exemplo, da península ibérica ao Brasil do século XX; do Romantismo português até o surrealismo, Na idade Média e no tempo de hoje; NO Romance de formação do século XIX até a Segunda Guerra; No teatro das três ultimas décadas no Brasil e na América do Sul. Ou coisas desse tipo.

Quando falei de mito de origem, não devemos nos iludir. A origem é sempre hipotética quando deixamos a ordem da fé. para ingressar na ordem da arte. Remeto neste particular a um belo ensaio de Regis Lefort, L´originel dans l´oeuvre d´Henry Bauchau. Paris: Honoré Champion 2007. O ensaísta mostra a retomada muito pessoal e muito instigante do mito de Prometeus acorrentado, já tratado pelo trágico grego Ésquilo, por Henry Bauchau, um dos mais festejados escritores belgas da atualidade. Foi não apenas uma a adaptação da peça antiga ao teatro sob o título Diotime e os leões, mas também a sua transposição para a ópera.. O mesmo escritor tem, aliás, re-escrito a tragédia Antígona para sob forma operática. Mas o que mais nos interessa é a distinção efetuada por Regis Lefort (Obra citada, p.21) acerca da prática de Bauchau.. Diz Lefort sobre a forma particular de re-emprego de mitos antigos pelo escritor belga:

o ponto central de sua obra é o originel (traduziria por originário) . Isso poderia parecer com o ALEPH de Borges. Originário tal como um Oriente da obra, marcado por um suspenso que seria a certeza de uma incerteza.”.

Em seguida, mas falando em qualidade de crítica que escolheu um tal tema, Lefort emite logo após essa observação :

O originário é aqui escolhido como problemática para o estudo de uma obra pode surpreender. Com efeito, ele não é uma noção crítica já conhecida nem um tema. O que não o impede indicar claramente um tratamento peculiar do espaço e do tempo. Pelo originário da experiência ou do ato de escritura, almeja-se alcançar um espaço e um tempo de antes dos começos, um antes fonte de uma arte que podemos aproximar da arte eterna do poeta visionário de um Arthur Rimbaud”.

Estas derradeiras considerações vão ao encontro de certas outras similares que tomarei mais adiante emprestadas do filósofo do imaginário Jean-Jacques Wunenburger (infelizmente não traduzido no Brasil, excetuando dois livros que se afastam do nosso atual propósito).

Depois das investigações preliminares assinaladas antes dessa digressão Bauchauiana, começa a análise propriamente dita da obra comprometida com um mito em estado de hipotexto (segundo a terminologia de Gérard Genette,in Palimpsestes. Paris, Seuil, 1982).

A análise seria, abusivamente falando, comparada, como se costuma dizer os pedantes da “literatura comparada”. De fato, este trabalho de não passa de uma simples análise contrastiva baseada num repertoriar de Diferença e Repetição, como diz um título de Gilles Deleuze. (Não é um livro não é livro muito fácil, porém umas páginas dele foram disponibilizadas para você). É necessário praticar um close-reading do mito.

Mas o que é afinal o mito? É uma narrativa “primordial”(Mircea Eliade).isto é, que dá um ponto de partido no incessante esforço de entendimento do humano, de sua existência, de seu destino na terra, de seu devir depois da morte.Tais narrativas tem sido sempre exploradas na arte e na literatura que são elas também lugar de questionamento ansioso sobres a nossa existência e nossa identidade , a morte e todos os enigmas e “por que ?” de nossa vida passada, presente futura de nosso destinos se transpõem nas artes, nos rituais religiosos, e depois desta vida em e de sua por algo que regula a nossa vida, as práticas sociais, e suas transposições nas práticas artística; e. Narra assim o começo o meio e o fim de nosso destino na terra, o que somos o que nos tornamos, para onde vamos- questões sem respostas certas fora da fé. Por isso é que todas as religiões se encontram aqui, bolando todas narrativas míticas Mas seria ingênua de pensar que apenas pastores e padres ou rabinos ou os discípulos de Buda e de Maomé e outros misticismos religiosos se preocupam com isso. Em nossa vida diária, estamos em busca constante de identidade individual e coletiva de todos os gêneros que banham em narrativas míticas- orais ou escritas ou cantadas ou representadas em drama, filmes, telenovelas e mil outros eventos da vida. Assim como o psicanalista e filósofo Jean-François Chiantarreto, sou convencido de que todo texto artístico tem um quê de autobiográfico, e portanto rebola após uma aferição de identidade. E Deus sabe o quanto os coitados de nossa pobre humanidade viram facilmente genocidiários, guerreiros, terroristas, kamikazes, torcidas organizadas, uma raça de bárbaros,, de torturadores, de barões nefastos disto ou daquilo, de Dr No da política, de Frankenstein em negociatas, APENAS afinal das contas para afirmar uma identidade sempre mal asseverada, sempre cambaleando. Todas as causas, nobres ou ruins, passam por mitos identitários subjacentes.

O mito está, portanto, na origem, no meio e no fim de TUDO, Tal como o imaginário, ele não é antes da sua concretização nem Bem nem Mal. Pois, há mito do ódio, há mito de amor, há mito apoiado em rituais satânicos, há mito patrióticos que levam ao heroísmo como às guerras injustas.Um mito está por trás do símbolo da SVASTIKA na sua versão nazista. Existe um arquétipo da redenção (portanto um mito regulador de fé ) na Cruz. Há mitos implicados em reverências dadas a todos os fenômenos da Natureza ( o Arco-iris) por exe.), a certas plantas medicinais, a certas flores, a certos pássaros (a Pomba da paz), a certas cores associada a morte ou ao bem estar da mente. Se mitos e arquétipos e símbolos que os subjazem regulam os nossos comportamentos e atitudes, é por conseguinte necessário pensar em formular uma ética do mito e do imaginário, para armar-nos contra certas derivas, assim como veremos no romance Sol Dos TRÓPICOS. Neste sentido não acho a arte, tão envolvida na exploração do mito, poder ser considerada para além do bem e do mal, como tenho dito anos atrás. Não quero colaborar à toda aquela insensatez que nos assola.neste planeta Terra. Há mitos que empurram para o bem, outros para o mal. Há mito assimilado a Gandhi, há mito assimilado a Hitler.O motor do desejo de um contrapõe-se aos impulsos do outro.Imagens associados à narrativa mítica do Mal se subdivisam, se hipostasiam em uma multiplicidades de componentes temáticos que se escondem por trás, por exemplo de um substantivo de ação ou de um verbo de ação. Pois existe palavra-ação, além dos verbos, existem nomes que os Gramáticos chamam de deverbais, etimologicamente derivados de um verbo de ação. Tema-mítico pode também se materializar em um enunciado, uma frase, um gesto, uma estrutura sonora, a faixa colorida de uma tela, um parágrafo, um conto, uma novela, um romance, um acontecimento histórico Habitualmente procuramos o agenciamento de um mito em qualquer gênero de discurso mediante a identificação de papéis ou melhor de agentes( no sentido geral de fonte de ação, daquilo que age, que tem impacto): personagem-tema, ação-tema, temporalidade tema (geralmente circular, cíclica como no eterno retorno, diria Nietzsche),espaço, situações., eventos complicadores, um começo, um fim. .Tudo pode ser tema ou mitema (diria Gilbert Durand), e é possível nas re-escrituras, registrar a virada de um tema mítico em meta-tema.

Em primeira aproximação, sendo o Imaginário o estudo das imagens que povoam a imaginação, em outras palavras: sendo as imagens constituintes da língua pela qual se expressa a imaginação, sendo o imaginário o domínio de residência da Imaginação, um domínio ubíquo que passa ao largo do racional., é preciso portanto aprender a ler as imagens. Mas pode ser imagem tudo aquilo que acabamos de enumerar no parágrafo anterior. Antes de tentar com Wunenburger, amigo de Durand, uma tipologia das imagens devemos ficar bem cientes que essa tentativa classificatória não pretende racionalizar a imaginação. Gilbert Durand e o filósofo Wunenburger sabem perfeitamente que a razão é incapaz de expressar adequadamente realidades dos afetos; a razão é até incapaz de compreender certas realidades da mente onde se encontram superpostas ou entrelaçadas, contrariedades lógicas, contraditórias. Para abreviar, o reino da Imaginação ou do Imaginário, que também é o do Mito, é reino das hiper-realidades espiritualo-afetivas ou anímicas, imponderáveis, impossíveis de ser enquadrinhadas, impossíveis de ser contidas na formalização lógica das frases, clausulas, definições. Elas transbordam estas. No entanto a imaginação e suas redes de imagens gozam de tem uma arquitetura misteriosa. As redes de imagens estão no térreo do edifício de vários andares do Mítico. Cada andar tem uma supremacia sobre aquele que lhe é inferior em forca produtiva e em universalidade de sentidos. A ordenação de que falamos pode ser pensada assim: é uma sorte de ordem hierárquica: vai de baixo para cima quando, perante um texto que suspeitamos comprometido com um grande mito, procedemos a um levantamento das imagens sensoriais, das imagens de superfície as quais levam às símbolos latentes, e estes a força propulsora residindo no par Arquétipo/Imagem primordial que ritmam Esquemas diretores ou “Schèmes”que ritmo o movimento. Mas do ponto de vista da Produção, o movimento é inverso. De bottom-up, passamos ao top-down. O reboliço da lambada vai de cima para baixo. Identificamos a fonte criadora do mito de partida, que compararia a uma língua estrangeira e que de tradução em tradução chega para nós em nossa língua. O que precisa então é acompanhar um dinamismo, e não efetuar um levantamento estático de puro reconhecimento. De fato, analisar é dançar uma lambada: sobe sobe sobe; desce desce desce. É uma dialética lambadeira.Teorica e no plano estático, é uma passagem em dois sentidos do Gênero à ao Indivíduo ou Singularidade, transitando pela Espécie.Da abstração e universalidade e a compreensão maior à singularidade concreta e porém resistente à abstração e reduzido à unidade concreta que, paradoxalmente é mais heterogênea, mais complexo. O corpo humano ao vivo é mais complicado que as pranchas de anatomia pela qual podemos abraçá-lo num só olhar..

Antes de chegar à tipologia de Wunenburger, volto a repetir minha descrença em tudo que é categorias invariável. Sou o homem da variações, da flexibilidade e do ecumenismo. Por isso para mim no ato de interpretação é puro bizantinismo ou casuísmo tentar separar ou distinguir um de outros Imagens,metáforas,símbolos. Principalmente quando se trata da “metáfora geradora” teorizada pelo Ricoeur em seu livro La métaphore vive de Paul Ricoeur (Paris: Le Seuil, 1975. existe tradução brasileira sob o título “A metáfora viva”).. As imagens primordiais ou arquétipos podem eles também sofrer modificação no ranking. Pense por exemplo na relação semiótica entre um Grupo de Personagens e um Personagem. O personagem singular ocupa na ordem da compreensão (contagem de componentes) similar posição hierárquica com seus constituintes do que a sua relação com o Grupo. O Grupo é mais abrangente e contem o Personagem entre vários outros. Mas o Personagem é um superconjunto de unidades (cabeça, tronco, braço, pernas e aí vai). E cada uma de suas unidades constituinte se torna um conjunto para uma nova hierarquia: o Braço tem antebraço, mão, a Mão tem dedos, os Dedos tem ossos e carne e pele e outros elementos anatômicos, etc, até chegarmos às células. Podemos assim multiplicar patamares hierárquicos produtores nas Imagens primordiais que escapolem ao visível, como a imagens sobrenaturais irrepresentáveis como as de Anjo. Aqui, há possibilidade de estabelecer uma hierarquia com poder de mando proporcional à sua proximidade do Pai Eterno entre Arcanjos, Querubins, Serafins e não sei mais o que. Todo o imaginário é povoado deste tipo de reversão ou inversão: algo superior aqui passa a um escalão inferior lá, como a árvore, seus ramos, e seus ramos de ramo.

Falando de árvore, é bom ter em mente que os Arquétipos assim como certos protótipos, são elencados a partir dos quatro elementos bachelardianos, ao tempo, ao espaço, à natureza. Porém, Adão, Eva são também Protótipos, igualmente Caim, Abel, o Cristo. O panteão pagão dos Gregos e Romanos nos provem com toda uma safra de mitos e de figuras míticas, como Eros, Dionísio, Narciso, Édipo, etc, E também o teatro grego-latino que as literarizou e as popularizou entre nos até os nossos dias: calcanhares de Aquiles), Antígona, Orfeu, o Minotauro, o Labirinto (lembre-se que o Labirinto é um tema favorito de Borges e de Octavio Paz), Dédalo (um dédalo de ruas). O filósofo francês Luc Ferry demonstra seu livro A Sabedoria dos Mitos Gregos: Aprender a viver II.(Rio de Janeiro: Objetiva, 2009,de que disponibilizei algumas páginas) demonstrou a atualidade desses mitos entre nós hoje, na fala cotidiana inclusive.

Omiti anteriormente dizer mais uma coisa muito importante a respeito dos Esquemas (Schèmes).Schèmes”ou Esquemas diretores estão relacionados a posturas corporais como a verticalidade, os movimentos de engolimento na digestão etc Sua existência e funcionalidade foram reveladas pelo Antropólogo francês Leroi-Gourhan, depois de seu dinamismo ter sido entrevista por Emmanuel Kant sob o nome de esquematismo.( schématisme). “Schèmes” ou esquemas diretores comandam, portanto, o imaginário, coordenando o dinamismo dos arquétipos, dos símbolos, das imagens. Nada parece ir ao sabor do acaso. O que levou o filósofo e antropólogo versado em Literatura, Gilbert Durand, a construir um modelo de funcionamento do “Imaginário em processo”. Este modelo está apresentado com requinte em As estruturas Antropológicas do Imaginário”.e resumido no precioso livrinho de Danièle Rocha Pitta, ex-aluna do Mestre francês. Um atalho está indicado nas linhas a seguir, nas quais vou dar mais um pulo para trás, a fim de manter viva a memória deste seminário.

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Relembrança da primeira aula + Novas diretrizes neste work-in-progress.

Antes, revemos rapidamente o evento da primeira aula (ou dfas duas primeiras aulas)

Dei as boas vindas a todas e a todos que vem participar desta disciplina.

É para mi,m uma grande satisfação para mim de reencontrar antigos alunos ao lado dos novos que um dia passarão a outros antigos. Isto ajuda certamente a manter um clima cordial e fraterno, como deveria ser em toda sala de Pós-Graduação.

Nas duas primeiras aulas foram tocadas as questões seguintes: o recorte estratégico ( a Poética do Imaginário tornado A Simbólica do Mal); a definição do Imaginário como Alfa e Ômega dos Estudos literários ( o escritor imagina, e nos enquanto profissionais da leitura cooperamos com a sua empreiteira descobrindo e revelando mundos e formas); não existe Literatura comparada stricto sensu sem abuso terminológico ( existe apenas Leitura Literária dentro da qual o Outro sempre está presente e confrontado comigo, ou na qual se constroem encontros e desencontros entre “diferenças” de vários tipos, quase sempre enraizadas em culturais ou subculturas, e que o leitor está convidado a arbitrar em posição de Mediador); obras produzem obras, toda obra origina-se consciente ou meio-inconscientemente a partir de uma fonte arquetípica, dum Mito “princeps”/primeiro, dum Type/Tipo (do que ela é uma variante, um token ;( isto atinge as questões formais como as questões de sentido,- personagem, modalidade de tratamento da temporalidade ou da espacialidade, portanto História e Geografia, Conhecimento científico ou técnico ou religioso, psicologia padronizada, Educação padronizada, enfim maneiras de fazer, de dizer e de até portando modos de enunciação, de utilização dos enunciados dóxicos ou adágios (cf. o tratamento “desviante” dos ditos populares por Hermilo Borba Filho). Disse também que o poeta francês simbolista Stéphane Mallarmé sabia partir, como procederá ulteriormente Raymond Roussel estudado por Michel Foucault, de uma palavra, fazer proliferar essa palavra como se fosse um mito seminal e gerar realidade nova ignorada de nossa enciclopédia. O que traduziria mais recentemente CDA no celebre verso “Palavra puxa palavras”e de modo muito mais elaborado o cientista emigrado nas Letras e tornado o pai da Psicocrítica, Charles Mauron num estudo sobre Mallarmé intitulado Des métaphores obsedantes au mythe personnel/ Das metáforas obsessivas ao mito pessoal).(Paris: José Corti, 1953). Fiz reparar também que Laurent Mattiussi, num a capítulo do livro Questions de Mytho critique organizado por Danièle Chauvin, André Siganos e Philippe Walter (Paris: Imago, 2005) cujo título é “Schème, Type et Archétype”(p.307-317) mostrou igualmente a partir da poética de Mallarmé um produtor de textos de alto gabarito podia utilizar palavra-gênero, ou palavra indutora, de teor assaz abstrato,bastante vazia, para nos incitar a evocar via a nossa própria imaginação de receptor um sem-número de realidades oníricas. O exemplo mais citado é o verso no qual o poeta profere a palavra FLOR e argumenta que essa prolação é de natureza a fazer sonhar, justamente por não ser uma flor específica que tem uma cor, um aroma, um jeito específico como o JASMIN.

O que me leva a pensar a uma hipótese do Doutorando Conrado Falbo. Depois de uma breve exposição sobre certa aporia em Bachelard e Durand, ele declarou que talvez a imagem precise ser esvaziada para que o leitor a preencha. Minha resposta foi: é um processo de comunicação programado pelo autor, um convite provável a participação do leitor à produção do sentido e do imaginar caro ao genial e dramaturgo e romancista irlandês Samuel Beckett que, a mediada que avançava ao fim de sua carreira literária, usava palavras aparentemente vazia, e reduzia o comprimento de seus escritos até chegar a opúsculos de cinqüenta, sessenta páginas narrativas. Fiquei muito feliz de ver uma reflexão semelhante à hipótese de Conrado num brilhante texto do filósofo das imagens, Jean-Jacques Wunenburger (“La créativité imaginaire: Le paradigme autopoïétique”. In FLEURY, Cynthia (org.). Imagination, Imaginaire, imaginal. Paris: PUF, 2006, p.153-182).Vou citar diversas passagens deste texto de Wunenburger a fim de reforçar aquilo que foi dito sobre o método mitocrítico da Re-escritura do Mito através da História cultural. Aqui volta ao primeiro plano da teoria os conceitos durandianos de Arquétipo, de Imagem primordial, ao noção de Tipo (este ultimo termo no livro do grande “comparatista” Pierre Brunel, intitulado Introdução à la Mythocritique), Aproveitaria deste ensejo para enfiar algumas outras definições digressivas, mas de suma importância, na tentativa tipologia das imagens de J-J.Wunenburger: uma idéia do “schématisme” ou de onde derivou o “schème“; a noção de “fantasmática transcendental,” as imagens do sagrado que, aliás, se encontram tanto na maioria dos textos da grande Mística religiosa de Oriente e do Ocidente como na alta poesia . Dizendo isto, estou dando um piscar de olho em direção do Mestrando José Juva Junior que estuda o xamanismo, - um assunto, disse, que foge da minha competência, que é mais da alçada de Mircea Eliade, de Henri Corbin e dos Estudiosos do Imaginário da Universidade de Paris 4).Concebo, no entanto, a literatura como uma certa forma de xamanismo, no sentido alargado do termo.

Vamos agora visitar algumas passagens de Wunenburger, assim como prometido, a fim de ir um pouco mais adiante no que tange ao “schème” e à tipologia das imagens. A referência é o livro de Cynthia Fleury acima referida sobre Imagination, Imaginaire,Imaginal. O texto do filósofo das imagens se chama, em minha tradução: “A criatividade imginária:, o paradigma autopoïético” (p.153-182)..

Professor Wiunenburger começa por definir o campo de trabalho do imaginário e do mito quando diz na página 158:

“A imaginação é o lugar onde de uma dupla atividade : uma de jogo com imagens já formadas, a outra de transformação de imagens mais moldadoras que moldadas ( no original: “plus informantes que informées”.); uma que limita a atividade imaginativa a uma variação de imagens antecedentes, outra que lhe confere seu poder de transformação dinâmica”.

É pensando a esse dinamismo que ele tem escrito as linhas seguintes numa página anterior sobre o esquematismo pó ele chamado de “matriz produtora”:

“A noção de “schèmes” vem do esquematismo em Imanuel Kant,.O esquematismo ( schématisme) foi identificado nos Filósofos do Renascimento que lhe atribui a qualidade de “força viva” da mente. No esquematismo, Kant acentuava principalmente a capacidade cognitiva da imaginação. Paralelamente à e diferentemente da trazçao, a imaginação é instrumento de conhecimento. Quanto ao “schème”, ele é uma noção que seleciona e valoriza um tipo especial de representação. Mas esta não se reduz à reprodução de um referente sensível, Proporciona algo que vem de dentro, daí o nome de autopoïêse. Palavra, ao que me parece, já usada nos trabalhos dos cientistas cognitivistas latino americanos Humberto Maturana e Francisco Varela, essa palavra por seus componentes gregos designa força produtiva autônoma. Wunenburger o adapta para designar nos ensinar que o schématisme/ o esquematismo em sua irreferencialidade dá lugar á “uma informação apurada, simplificada, genérica e genética.. O “schème” possui a virtude de unificar uma pluralidade de particularidades mesmo a mantendo uma forma sensível; ele tem também a função de dinamizar o psiquismo, uma vez que a sua utilização permite exemplificações concretas e múltiplas”(p.157-158)..

Gostaria que tudo aquilo que acabamos de ouvir seja aproximado da idéia de protótipo dinamogênico, de matriz mítica ( em minha terminologia).

Prosseguimos agora com a tipologia das imagens ofertada por Wunenburger (p.159-164).

São cinco os tipos de imagens. Não entraremos nos pormenores da explicação de nosso eminente colega. E vocês já sabem da minha reticência quanto às tipologias. Mas aqui pode ser útil escutar Wunenburger.que é um sábio. Ele começa por sublinhar a importância de aplicar o a concepção do esquematismo tanto às imagens visuais quanto às imagens verbais. O esquema é, portanto, verbal e icônico. Wunenburger foi até acrescentar algo fundamental para os estudiosos da intersemiose, a saber (p.159) NUNCA EXISTE SIGNO DE LINGUAGEM SEM RASTO VISUAL, NEM IMAGENS VISUAIS SEM UM ACOMPANHAMENTO VERBAL / “Il n´existe jamais de signes langagiers sans sillage visuel ni d´images visuelles sans um accompagnement verbal”. Deduzo,pottanto, o axioma o imaginário produtor é verbo-icônico. Haroldo de Campos diria verbo-icono-vocal. Entretanto, com um ranço um tanto platônico no começo Wunenburger apresenta os 5 tipos de imagens a seguir:

1) As Idéias “imageadas”. ( as de Platão na caverna e supostamente especular do real);

2) As imagens alegóricas : a alegoria, diz o autor, é inicialmente um procedimento qu conduz a transpor um conteúdo de pensamento abstrato em imagem.(cf. J. Pépin Mythe et allégorie.Paris: Aubier, 1958).. Próxima da idéia, mas estratégica para ilustração e uma comunicação ordinária eficaz, a alegoria é de fraco teor criativo, salvo na guinada semântica que soube lhe dar Walter Benjamin. Reenvio os interessados, para além de Willy Böl e de vários textos de Seligmann-Silva, a dois livrinhos muito interessantes sobre a abordagem crítico-alegórica nas pegadas do extraordinário Benjamin: 1) Marcio Seligmann-Silva. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/José Olympio, 2009;:Bruno Tackels: Petite Introduction à Walter Benjamin. Paris: L`Harmattan, 2001;

3) A imagem de personificação. .É uma modalidade de colocação em imagem que transpõe uma idéia em uma personagem;

4) As imagens-esquemas, no sentido restrito, se limitam a configurações elementares do tipo do pictograma que resumem, simplificam uma realidade, incitando a engendrar uma variedade de formações particulares, ou inversamente, a remontar a uma in formação seminal (espermática diz o autor), uma definição geral sem face sensível (p. 160).N.B-Parece-me o procedimento escolhido por Ricoeur na sua apresentação da Simbólica do Mal.,

5) As imagens-arquétipos: na raiz de um esquema/scheme se encontra por vezes uma imagem originária, matricial. Sem ser determinada por um conteúdo, esta espécie de imagem teria , à maneira de um molde, a capacidade de gerir todas as sortes de imagens correspondendo a uma forma semântica. Exemplo: o pai ou a mãe, os elementos naturais (água, fogo, terra, ar) são tratados de arquétipos por Carl-Gustav Jung e G. Bachelard..

6) Os objetos marginais (cf. Durand, As estruturas antropológicas do imaginário). Por exemplo quando as nuvens são projetados sobre suporte material cujas formas geométricas, semi-figurativas ou emblemáticas servem para pensar, imaginar, sentir. São operadores externos de processos psíquicos de transformação de imagens, que chegam a dar nascimento a objetos rituais, como as mandalas ou obras de arte.N.B.- (confesso que isso passa um pouco longe de minha experiência de tradutor)

O autor conclui este breve sobrevôo de tipos de imagens (semi-imagens, proto-imagens, etc), pela observação seguinte: O pensamento puro deve ceder o seu lugar a um pensamento visual e lingüístico impregnado de energia cognitiva (162).No fim das contas, o esquematismo está a favor da reintegração da imaginação não reprodutiva nas operações de conhecimento como zona mediana, e também como pólo-fonte e recurso da vida do espírito (p.163 ).

Wunenburger não para aí. Ele empreende uma investigação sob o subtítulo “A Imaginação metamórfica” que vai nos conduzir a um novo olhar sobre a metodologia bachelardiana, que ele qualifica de metodologia contraditorial (na página 167, que cita em nota S. Lupasco, autor da Filosofia do Não). Vou dar conta apenas de algumas passagens que me parece de particular relevância.Por exemplo, na página 167, Wunenburger assinala que existe em Gaston Bachelard uma dupla metodologia da compreensão da imaginação viva:

1°) uma metodologia fenomenológica que flagra, nas invenções e nas obras, uma imaginação in actu;

2°) uma metodologia de pendor estrutural, que, retrospectivamente, descobre que o trabalho da imaginação obedece a estruturas profundas constituindo o alicerce de todos 0os regimes de produção de representações.

Um pouco mais adiante surge uma colocação sobre a criatividade bachelardiana na qual essa dupla metodologia entra num jogo dialético. O autor nos afasta um pouco da idéia de que a Imaginação é apenas um dom, Em seus próprios termos, “ a criatividade não é a simples expressão de um gênio que vem fluir de dentro para fora segundo o modelo da energia criadora de Henri Bergson; ela deve ser de preferência entendida como o resultado de uma dialética entre uma tendência para a inovação e uma resistência a uma estrutura que agiria como uma mola cuja força deriva de uma compressão prévia.” O contexto dessa declaração é o da luta em que devem se empenhar como em um corpo a corpo com a matéria, previamente à liberação da imaginação o padeiro e outros artesões (p.169) Essa passagem constitui para mim uma excelente analogia do trabalho literário criativo que, como já disse, tantas vezes, é antes de mais nada um corpo a corpo com o material literário de estudo (Textos de ficção, teatro, poemas, e obra prima da Paraliteratura, pintura e música, filmes ), de preferência à indigestão estéril de uma tonelada de textos teóricos. A pessoa que vai me convencer do contrário ainda não nasceu.

Mais uma passagem bem inspirada de Wunenburger em sua interpretação de Bachelard, que me lembra mais uma vez uma intervenção de Conrado Falbo.“Está no fim da página 169 e nona página 170 e se traduz sumariamente assim:

“A poética de Bachelard propicia a descoberta duma propriedade latente da própria imaginação.. Esta propriedade reside num processo de desligamento das imagens, ou mesmo da sua emancipação.Paralelamente ao que acontece na abstração científica, parece que a poética se vê conduzida a operar uma de-substancialização das imagens, quando estas tendem a atrapalhar a criação. A imagem está sempre convidada a desaparecer em prol de um núcleo de sentido novo, o que implica uma sorte de retirada e de esvaziamento. O dinamismo do imaginário em Bachelard acaba ter como fundamento derradeiro uma sorte de processo que consiste em esvaziar a imagem para que uma outra possa tomar o lugar.Foi isso que intuiu Conrado na aula de29 de março 2010. Louvada seja a sua intuição teórica!

Prossegue o filósofo francês, dando a máxima abrangência no plano da Poética ao seu achado, cabe a cada um se acostumar a fazer igual):

É convocando uma parte de não-ser que o ser da imagem libera a sua verdadeira riqueza, que é de nunca fazer obstáculo ao outro de si mesmo. A criatividade é um processo de alteração das representações do qual surge uma alteridade. Esta será tanto mais dinâmica que uma fase de altercação, de luta terá permitido de fazer emergir a resistência da representação no lugar e no tempo mesmo de sua capacidade de interiorização”(p.171).

A conclusão que Wunenburger tirou de tudo isso muda sensivelmente a nossa compreensão do imaginário e nos introduz ás imagens proféticas, místicas, sobrenaturais, que Henri Corbin, versado na cultura religiosa meio-oriental, na cabala cristã, na cabala árabe e judaica desenvolveu sob o nome de “imaginal” em seu livro “L´imagination créatrice dans le soufisme de Ibn Arabi. (Paris:Flammarion, 1956). Mas não ouso me aventurar neste domínio. Anoto apenas a seguinte observaação:

“ É um domínio metafísico , à margem de toda mimêsis reprodutora e do plano empírico. As categorias vigentes, diz Wunenburger, são o invisível, o oculto, o subliminal, o horizonte (p.176). O imaginal se esforça por dar corpo a esses eventos da esfera imperceptível, seve de conceito operatório a fim de conferir uma identidade originária a essas captações de presenças sobrenaturais , distinguindo-as da proliferação de imagens subjetivas, ou modos de fenômenos existentes em nosso mundo cotidiano.”(p.179)

Fechando essa última informação, voltamos mais uma vez à uma segunda versão das primeira aula ou talvez na ocasião da chegada das minhas caríssimas Piauienses da UESPI, Margaret, Silvana, Sueli,Lilla de Miranda.

.Disse novamente que íamos estudar apenas estudar O MITO DAS ORIGENS, ou mito de fundação do mundo. O primeiro livro da Bíblia, a GÊNESE oferece uma versão deste mito. Não existe povo que não criou um tal mito, por isso que ele se chama de mito cultural.Mas especialmente predominam no Ocidente paralelamente ao Mito bíblico da Gênese, os mitos cosmogônicos ou de fundação dos Gregos. Nos os latinos nos os receberam através do Romanos que os adaptaram. Vocês se lembram do chamado Milagre Grego: estes foram vencidos pelas armas, mas passaram a dominaram culturalmente o seus vencedores, os Romanos .

É mais do que provável que a memória cultural do Brasil combina uma mistura de mitos originários da península ibérica, de vários povos da África, da cultura ameríndia e outros aportes mais recentes que circularam através de objetos de artes, de utilidades domésticas, de culinária, de técnicas de construção, de transporte, de canções, de práticas corporais inclusive o esporte, práticas religiosas, de curar, de Fatos lingüísticos Mas o que vai nos reter a atenção é o Mito da origem do homem e da natureza, do qual derivam inumeráveis Arquétipos ou Símbolos Cardeais na Arte e Literatura, em uma multidão de expressões cotidianas em todas as línguas e culturas. Aqui já pela transmissão cultural, incontáveis re-escrituras que aprofundam a Mitologia comparada na “Literatura comparada”, uma área de pesquisa chamada pelos discípulos de Gilbert Durand de Mitocrítica e Mitanálise. A mitanálise tem a particularidade de vascular mais amplamente o contexto histórico-social do mito em uma coletividade. No quadro de nossos empreendimentos de poeticista, está privilegiada a denominação MITOPOÉTICA.

No mito da origem, se encontra embutido um duplo rumo de estudo estreitamente ligado como Cara e Coroa: o Mito do Paraíso & O Mito da Perda do Paraíso Para re-escrever ambos juntos com uma ênfase num deles, os poetas, dramaturgos, romancistas , Músicos de ópera (Gounod, Berlioz), Pintores, Escultores se inspiram habitualmente no Livro I da Bíblia intitulado GÊNESE, mais indiretamente e em um certo sincretismo em mitos Gregos (Hesíodo, Os trabalhos e os Dias) ou Babilônicos ou Orientais (Gilgamesh). Em ocidente, as duas mais fortes expressões deste mito do paraíso perdido é o famoso drama Paradise lost do genial dramaturgo britânico, Sir John Milton e o citado ópera de francês Charles Berlioz.. Mas durante o Congresso da ABECAN (Novembro,2009, Universidade Federal de Goiás, Goiânia , Goiás) , o professor Sébastien presidiu uma mesa de palestrantes sobre o Mito das origens com três textos intitulados: O mito das origens no poeta canadense Gilles Hénault, O Paraíso Perdido em Carlos Drummond de Andrade e John Milton, O Paraíso recuperado na poesia de Gilberto Mendonça Teles..

Estes textos lhes serão comunicados

Mas do ponto de vista de uma Mitopoética nossa referência máxima é um estudo programático de Paul Ricoeur. Ela se encontra traduzida em parte em O conflito das Interpretações (Ricoeur, Paul. Porto:RES,S/d, p.282-291). O texto completo tem como referência, o tema principal da presente opção da nossa disciplina dada logo a seguir:

RICOEUR, Paul. The Symbolismo of Evil. New York:Harper,1975.

RICOEUR, Paul. Philosophie de La volonté. Tome 2:La symbolique Du mal. Paris:Aubier, 1960.

Em termos expressos, o tema se chama: A Poética do Mal., no qual o mito fundamental é o Mal na sua etiologia, na diversidade de suas figuras ou mitemas, expressão esta que, originada de Livros Sagrados de praticamente todas as culturas do mundo; se traduz e se re-traduz ( melhor: se re-escreve) ad infinitum nas obras de arte e de literatura.. Portanto, mais uma vez, voltamos a repetir que se trata aqui de uma poética,ou modo de produzir literatura e arte, suscitadora por sua vez de uma apreciação estética. Entramos em Literatura e nos Departamentos de Letras para nos ocupar dessas coisas, quando a Instituição (professores, tradições, regulamentos administrativos, horários, contagem de créditos) nos o permite..

Eis agora mais uma referência de apoio, ausente de nossa bibliografia inicial. Pode ser adquirida pela Livraria Cultura , Recife.Tel.:2102.4033

PELLAUER, David. Comprender Ricoeur. Petrópolis: Vozes, 2009, p.31-32 + p.25-35. (disponibilizado).

Quem trabalha sobre Memória, Narrativa, Identidade, deveria comprar este livrinho cujo valor está entre 20 e 30 reais.

Por que Ricoeur? Sumariamente, Ricoeur foi escolhido porque ele responde a essa idéia de Walter Benjamin difundida por Marcio Seligmann-Silva, a saber que a literatura é uma filosofia ou seja, uma vasta metáfora cognitiva em seu universo de discurso. Por conseguinte, estar à altura desta mundo em estado permanente de produção mesmo depois da última palavra do texto, é ser um leitor-produtor em segundo grau. O impacto da obra incita a isto.Ora, tal é o ensinamento da Hermenêutica filosófica e da Poética de Paul Ricoeur.

Embora não seja nossa intenção de provar essa afirmação, remetemos os interessados a alguns estudos comprobatórios indicados por David Pellauer:

EVANS,J. Paul Ricoeur´s Hermeneustics of the imagination.Nova York:Peter Lang, 1995.

RASMUSSEN, D.M. Mythic-symbolic language and Philosophical Anthropology. A constructive interpretation of the thought of Paul Ricoeur. Haia:Nijhoff,1971.

Ricoeur, Paul,. The metaforical processo as cognition, imagination, and feeling.Critical inquiry, Vol 5, 1978,p.145-159.

VALDÈS, Mario J. (org.) Reflexion and imagination. A Ricoeur reader. .Toronto: University of Toronto Press,,1991

No trecho da Simbólica do Mal de Ricoeur que submeti a sua leitura e apreciação, o filósofo analisa as imagens segundo os seus gradientes de universalidade ou de abstração, semelhantemente à distribuição das categorias do imaginário em Gilbert Durand e em um de seus brilhantes intérprete, o filosofo das imagens Jean-Jacques Wunenburger: esquemas diretores, arquétipos, símbolos, imagens. Seu discurso evolui do particular,do singular, - digamos de preferência, do sensível e do sentido aparente (a nódoa, a coisa suja, o peso da consciência ) para o menos visível, para o latente, para o não manifesto, diríamos aquilo que se intui ou que se deduz como inferência quase-conceitual ( a culpa ou um vago sentimento de culpa), para chegar assim a um terceiro patamar nitidamente reflexivo, a consciência da culpabilidade, a interiorização da falta. Chegando a este nível, e sempre guiado pelas palavras-imagens, por palavras-metáforas assim como tão bem o demonstrou Gastón Bachelard, estamos instrumentado para começar o trabalho da interpretaçã0o mítica ou mitocrítica ou mitopoética propriamente dita.

Até agora estávamos fazendo uma leitura de reconhecimento cde terreno, um agrimensura, um levantamento, um survey das imagens possíveis e s de suas possibilidades de operacionalização. Doravante entramos no cerne do trabalho, isto é, na fase propriamente mítica dos Estudos do Imaginário segundo Ricoeur. É preciso chamar as categorias de Gilbert Durand mencionadas acima. Não para colocar o a Imaginação criadora em uma camisola de força. Toda teoria não passa de uma boa indicação e de útil ponto de partida para a reflexão sobre o material de terreno ou a obra. Pois este ou esta que vai decidir da adequação do instrumento. Todas as vezes que a imaginação produtora resiste, somos autorizados, por vezes obrigados a INVENTAR a partir do método ou da categoria em uso. Dar uma guinada para a qual apela o objeto de pesquisa. Teoria-camisola-de-força é contraproducente, poda o agir, principalmente se remontarmos à origem grega da palavra THEÔRIA, contemplação..

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Entretanto, nesta altura, favor começar por procurar em Danielle Rocha Pitta, Iniciação à Teoria do Imaginário de Gilbert Durand, (nas páginas17 e 18) uma revisão das noções de “Schème”, arquétipo, símbolo, imagem)+ na nas páginas 22-23 a concepção dos Regimes Diurno e Noturno do Imaginário, tendo em mão também o quadro da pagina 82-83 do livrinho A Imaginação Simbólica de Gilbert Durand ( Editora Cultrix) que já e foi disponibilizado. Pode também, se quiser, dar um olhar no meu artigo Regimes do Imaginário em Invenções da Noite Menor de Cesar Leal. Com isso você vai entender melhor aquilo que diz Paul Ricoeur nas 9 páginas referentes à Simbólica do Mal.

Não precisa de mais Teoria para infernizar a sua vida. Basta usar este compêndio, e refletir sobre o ou os textos de Literatura que você está trabalhando. Se está viciado mesmo em teorêtica, aguarde o meu Livro que está em diagramação na Editora da UFPE: Poética do Imaginário e Mitopoética. Ou caso tenha capacidade de ler francês , procure-me para receber um capítulo sobre a profecia, sobre as imagens místicas e as imagens do sagrado que dificilmente tem correspondência no real visível, mas que não existem menos na poesia e em toda obra religiosa e de imaginação de primeira grandeza. O livro de Cynthia Fleury (org.), Imagination, Imaginaire, Imaginal, Paris: PUF, 2006, p.131-182 tem um texto de Douglas Hedley sobre La Prophétie/a profecia, e um texto de Jean-Jacques Wunenburger sobre La créativité imaginative. Le paradigme autopoïétique (Kant, Bachelard, H. Corbin), suscetíveis de preencher todas as expectativas.. Mas dentro da meta escolhida para este semestre , É PRECISO PASSAR LOGO À LEITURA Do Mal em O Sol dos Trópicos.( de David Gonçalves).

Nova programação definitiva para os demais encontros

1) em abril e até a segunda semana de maio: o Funcionamento da Mal na simbólica de O SOL dos TRÓPICOS;

2) na segunda quinzena de maio: o nascimento e a evolução do Mito de Faust ( como mito do Mal) - : O mito se iniciou com Johann Spies (o Faust real) na passagem do final da Idade Média ao Renascimento , e de intermediário em intermediário no Teatro de Christopher Marlowe, e na literatura (inclusive religiosa e edificante graças a Luther e Calvino) chegou ao Faust de Goethe (drama da Alemanha romântica) e depois ao Mon Faust de Valéry (poeta francês do século XX)

3) Ainda em Maio: Ver como um Homem real elevado a nível de símbolo de uma multidão VENCE um ser natural elevado também a nível de Símbolo do Mal, pela Leitura das 19 primeiras páginas de Espelho de tauromaquia de Michel Leiris ( para o nosso prazer).

4) Junho: exposição discente/ , uma resenha contendo A) o que retirou de útil nesta travessia toda, B) O que é possível encaixar de tudo isto em seu projeto de trabalho (tese, dissertação, projeto futuro)

Mais repisação para os que foram ausentes: Na primeira Aula, foi dito também que O Mito pode se esconde muitas vezes em nossas leituras na roupagem das metáforas e de muitas conotações que é preciso trabalhar com um olhar para trás (História da cultura grego-latina, e História literária, História dos grandes eventos e fatos marcantes de uma época: personagens famosos, heróis, vedetes, cataclismo natural memorável, genocídio etc ) observando sempre o jogo da Intertextualidade, a retomada de fato virado protótipo, as imposições da fala comum, a emergência ou re-emprego de Temas e Motivos à maneira de Borges.

Entretanto, não é impossível que um texto artístico moderno seja o ponto de partida de um sem-número de rebentos ou proles, que tal obra faça história ao desencadear uma variedade de formas ou gêneros de discursos, de artes plásticas, de arte publicitária, de u slogan. Mas em geral um mito implica um olhar para trás e ao mesmo tempo para frente Trabalha com a memória e com a utopia ou profecia