Sébastien Joachim

Este blog é um meio de comunicação entre o professor e seus alunos.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Poética do Imaginário, Aplicação.

A aula-seminário de 19 de abril começou por uma rápida informação que eu trouxe sobre a relação entre “Xamanismo e Literatura” e sobre a reescritura.

A re-escritura é o processo da Mitopoética ou Mitologia Comparada ou Poética comparada. É uma investigação que começa todas as vezes que na leitura do texto registramos ou suspeitamos a presença de um mito já divulgada pela História cultural do Ocidente ou do Oriente. Abrimos aqui um parêntese para dizer que isto não impede, na ausência deste reconhecimento ou desta suspeita e no fim de uma leitura atenta, emitir a hipótese de um mito inédito em construção na dinâmica de um processo de escritura. Segundo Fabio Josgrilberg (Cotidiano e Invenção. Os espaços de Michel de Certeau. São Paulo: Escrituras, 2005,p.50),uma tal hipótese vai ao encontro do pensamento de Michel de Certeau, Pois, para o grande historiador e pensador francês, na modernidade a escrever se tornou uma atividade mitizante, uma construção de mitos, embora tradicionalmente tivessemos reservado a palavra mito para o gênero narrativo. No entanto, devemos admitir com Bachelard a presencia subjacente de uma narrativa, de um mito potencial em um grande número de palavras associadas a uma ação, à uma irradiação (dançar,rir, plantar) ou mesmo certos substantivos ( fogo, água, ar, terra) aos quais acrescentamos “flor” com o poeta Mallarmé,Mais ainda, refletindo sobre a tríade nocional “Schème, Type et Archétype”, (In Questions de Mythocritique, D. Chauvin, A. Siganos, Ph. Walter,org.Paris, Imago,2005,p.307-317),Laurent Mattiussi confirma o grosso modo o pensamento de De Certeau na passagem (p.313) onde ele declara que, desde Mallarmé, “a literatura retoma por sua conta própria os procedimentos de tipificação que constam no mito”.

Fechando o parêntese, para voltar à modalidade tradicional de aparição do mito, para indicar mais uma vez o caminho interpretativo que se empreende logo que sua presença foi detectada. Procedemos a uma genealogia nietzscheana (Genealogia da moral) ou uma arqueologia foucaultiana (Arqueologia do saber) com base na História literária/cultural e na História social, depois de uma familiarização preliminar com as de análise de Gastón Bachelard, Gilbert Durand, Mircea Eliade, Paul Ricoeur, Ernst Cassirer,Jean-Jacques Wunenburger, Harold Bloom (The anxiety of influence), Antoine Compagnon (O trabalho da citação),a noção de Palimpsestes de Gérard Genette, de re-escritura tal como foi observada em J-L. Borges, assim como certas idéias de Freud-Lacan sobre a “reprise”/ a retomada, a abordagem alegórica de W. Benjamin. Dispomos assim de uma ampla gama multidisciplinar de recursos no horizonte de uma tal pesquisa. Pessoalmente consideramos este gênero de estudos no domínio da Literatura Comparada, quando se toma o rumo tradicional, e no quadro da Poética na acepção aristotélica, quando adotamos a perspectiva de De Certeau e de Mallarmé. No que diz respeito à oportunidade deste tipo de investigação no Brasil, remetemos ao capitulo de Benedito Nunes “Volta ao mito na ficção brasileira”(B. Nunes, A clave do poético.Org. de Victor Sales Pinheiro. São Paulo:Companhia das Letras,2009, p.289-302).(Esta na Casinha, e junto com apostila sobre os Mitos cósmicos tirado da Dissertação Refém da Infância)

Sobre “Literatura e Xamanismo”,

,de que falamos muito rapidamente na aula anterior.

Num volume de homenagem dedicado pela casa editorial parisiana Cahiers de L´Herne ao famoso especialista da Mitologia e Historiador das religiões o romeno Mircea Eliade, o estudioso Jean Biès apresentou um esquema em três partes para investigar este tema, principalmente na poesia.

Convém primeiro estudar o processo de INICIAÇÃO no ato de escrever ou no ritual da escritura. Lembro-me ter lido muito anos atrás dois livro relacionados com este aspecto: Paul Bénichou, Le sacre de l´écrivain; sobretudo, Claude Abastardo,Mythes et rituels de l´écriture. O poeta ou o escritor recebe na vertente da iniciação uma investidura que o põe à margem sem o separar da sua comunidade (cf. o poema “O´albatros”, do volume As Flores do Mal de Charles Baudelaire. Ele endossa uma função de “ser-de-fala”, de sujeito que profere uma palavra-energia suscetível de domar forças do universo ainda mal conhecidas, vale dizer ele detém um poder de “cura pela fala” (expressão de Anna O., a primeira paciente na história da Psicanálise). Uma transcendência pela fala e também pelo gesto que a acompanha. Um dos comentarista de Michel De Certeau,o poeta e crítico literário francês Michel Deguy declara a respeito desta transcendência mediada por uma fala similar à fala mítica que se trata de “uma posição supra-sensível de onde o sensível é visto, dominado até um certo ponto” (Note sur Le syntagme “Fable mythique. In Rue Descartes,Revue Du Collège International de Philosophie, N. 25,1999, p.45)

Em segundo lugar, é preciso examinar o que se chama “a ABSTENÇÃO DOS PODERES”, pois o xamã é um ser depreendido, é pela sua distancia o imediatismo, pela renuncia a todo controle em prol de si mesmo que ele escapa ao karma deste mundo.

Esta disponibilidade total conduz a uma possibilidade de comunicação com o transcendente, uma chance de ser investido ,graças à uma receptividade máxima, por vozes de diversas proveniência.. Decorre disto a capacidade de particular de ouvir, de perceber de um modo transcendente, como numa situação de êxtase. E isso se chama INSPIRAÇÃO. Tudo se passa como se ao renunciar a tudo que é imediato, ao voar por cima de mundo material, o xamã ganha o privilégio de uma segunda visão, uma perceptividade de alcance maior. Ela consegue assim a por em conexão realidades aparentemente desconexas. A abrir mão de toda ambição de dominação imediata se eleva a uma outra forma de subjugação dos males deste mundo,

Reparei em seguida nos poemas que José Juvio me comunicou uma saturação de imagens da natureza, de rituais de encaminhamento para a êxtase, mediante um sobrepujar-se do peso da gravidade, a presença de pássaros muitas vezes metonimizados pelo vocábulo “asas”, ou por objetos técnicos como o avião.

O mais interessante é que essa leitura cursiva me ajudou a descobrir uma função xamánica não apenas em toda poesia, mas no poético como liquido amniótico em que banha toda obra literária e artística significativa, como O SOL dos TRÓPICOS, de David Gonçalves. Obra marcada pela poesia nos toques descritivos sobre a natureza, nos lampejos enunciativos sobre a poesia canção, sobre a parte idílica dos encontros amorosos, obra marcada também pela tragédia do amor não partilhada, cálculos traiçoeiros e sórdidos que desmoronam toda uma vida. Mas na tecla xamánica, notamos que o artista poeta transporta o seu público para uma realidade que faz esquecer a miséria deste mundo: ele é portanto um xamã curador. Mas por um engano cruel, na tecla irônica dos primeiros capítulos do romance de O SOL dos Trópicos padre Deuteronômio exerce também essa função: duas ou três vezes, ele foi chamar na mansão de Pasternak para aliviar a sua filha Crisálidas de um mal misterioso. Seria interessante ler pelos detalhes os capítulos onde Deuteronômio, foi acolhido e recebeu uma investidura xamánica: ele é preferido no lugar de um médico tradicional, ele é cumprimentado, festejado como um verdadeiro mago pelos resultados sem nada comparáveis que seus “passes mágicos” conseguem, uma vez que o mal não é coisa material mais coisa da alma. Entretanto o leitor está sabendo que, longe de ser um santo, Deuteronômio é o lobo no redil.

São alguns elementos que deixaremos de explorar a fundo para não desviar do propósito de encarar de frente a simbólica do mal. O beneficio é de nos fazer entrever a presença em Crisálidas de um mistério do mal que, se não fosse psicossomático, pode bem escapar ao olho nu e fugir do alcance das realidades nomeáveis pelas palavras de nossa enciclopédia. Quando isso acontece, o ficcionista, mais habilidoso do que os teólogos, se transforma em poeta e em narrador que entre em êmulo com os narradores bíblicos, inventando cenários, personificando, corporificando, tornando tangível, audível, familiar, aquilo que é puro espírito, intocável, e inaudível. Estamos em pleno mistério da trans-substanciação poética. mesmo se tivéssemos a ingenuidade de pensar que efetuamos uma leitura literal. É uma oportunidade para mim de corrigir o lingüista dinamarquês Louis Hjelmslev: o sistema lingüístico primeiro que ele imaginava servir de escadinha para um sistema modelizante de segundo grau chamado Literatura passa de fato a ser coincidente com o primeiro. Re-esquentaremos essa problemática mais adiante.

Para servir de lembrete: são três as vias de investigação no domínio: do xamanismo poético. São designadas por três expressões-chaves: I) Iniciação, II) Abstenção dos ´poderes, III) Inspiração( Jean Biès, Chamanisme et littérature. In Mircea Eliade. Cahier de L´Herne. Paris. Editions de L´Herne. Biblio-Essais, 1978.)

Seminário do dia 26 de abril

No dia 12 de abril , temos iniciado uma leitura da Simbólica do mal no romance O Sol dos Trópicos de David Gonçalves.

Comecei por umas palavras sobre a intriga. É a história de um padre que atravessa uma grande crise moral. Seus desejos carnais, as aventuras e dilaceramentos morais que disto decorrem além de seu desentendimento com o seu superior o Bispo, disputam o espaço das 4oo páginas do romance com a temática social dos Bóias Frias lutando para trabalhar, ter um salário justo, uma vida decente.

Falei do quadro físico, do predomínio das imagens cósmicas, em primeiro lugar do sol e com ele do calor excessivo que se traduz em imagem de suor, de mau cheiro concomitante à miséria física. Até a chuva fica na decorrência do sol de chumbo, pois não alivia a atmosfera castigadora. Mas no desvio de uma página podemos depararmos com uma aurora ou um fim de tarde bonito como uma benção repentina da Natureza num meio dominado pela violência: a história é salpicada de autoritarismo, de brigas, de linchamento, de assassinato seguido consumo de carne humana em um ambiente de festas, de dança e de bebedeira. Essa exacerbação pelo alto é uma transposição na ordem moral do arquétipo do Fogo aliado ao SOL quase sempre ao seu zênite.Pelo baixo a exacerbação é de um estado de miséria, de esmagamento, de desprezo a nível quase absoluto que cai dos poderosos (Fazendeiros, Banqueiros, Bispo e Arcebispo, Políticos) sobre os bóias frias, os pequenos lavradores, os meninos de um orfanato. O mito solar tem recebe reforço por parte da geometria que está no nome da cidade: Quadrínculo, lugar onde estão enjauladas as vítimas do Poder que bota fogo nelas. Quando há interlúdio de chuva, nada faz para atenuar este fogo infernal.

No final, o Padre Deuteronômio abandonará o convívio da Igreja, dos Grandes do pedaço, para um destino de proletário, mas saindo da jaula de Quadrínculo lado ao lado de seu filho reencontrado entre os boias frias. Pois, um dos grandes dramas de sua vida tem sido o abandono na volta ao Seminário de uma moça (Eleonora) e do filho que resultou da aventura amorosa com ela. A mãe morreu, o filho foi para um orfanato desconhecido. E quando reapareceu no cenário será para resgatá-lo milagrosamente do inferno de Quadrinculo. O como deste resgate foi mediado por uma operação espacial imaginário que consiste na “mise em abime” de Quadrínculo. No começo da História o padre tem chegado de um outro lugar , de uma outra paróquia de onde foi afastado pela ordem do Bispo por ter cometido o pecado de ter-se aliado aos boias frias. Foi a queda num primeiro buraco, pois o castigo consiste em ser mutado de um lugar bom de se viver para um buraco, no sentido popular da palavra. Aí, vai se repetir a mesma falha haja vista o peso do nome do herói sobre seu destino: na ficção o nome é o destino, assim como o sexo. Seja dito de passagem, nesta ficção em particular onde triunfa o poder patriarcalista, as três jovens Eleonora, a prostituta da casa de Madame Consuelo, Crisálidas (filha do poderoso Pasternak) foram humilhadas e ofendidas, duas se suicidam uma sai do cenário depois de ter escapado a um assassinato. Belo bilã ficcional. Mas por vezes coincidem real e ficção:as delegacias de Mulheres são afogadas sob o excesso de queixas. Deuteronômio caiu, dissemos numa cidade-paróquia que além de simbolizar a sua fidelidade na função deuteronômica (ajudar os necessitados que são as bóias frias) simboliza para ele um buraco múltiplo. Vale a pena acompanhar pari passu, isto é, passo a passo, os diferentes lugares por onde ele principalmente transitou nesta cidadezinha. Paul Ricoeur facilita a nossa leitura ao distinguir três tipos de imagens na sua poética dos símbolos: as imagens cósmicas, as imagens oníricas, as imagens poéticas. As primeiras repousam nas realidades e fenômenos da Natureza, que Bachelard soube genialmente explorar. Já entrevemos a função simbólica do sol tropical. Sua presença ubíqua traduz um mal-estar físico num nível primário , afim de orientar o leitor ao sentido latente, metafísico que penetra o ambiente, manipula as mentes, anima os corpos, os braços para matar, cortar, esquartejar, linchar ( o assassinato do homem que virou churrasco, a prostituta da Casa de madame Consuelo sob a faca do facinora Tonico) ; o sol, seu calor excita os desejos para desafiar a lei moral ou juramento de padre, ele também pode desanimar, seu excesso pode desmoralizar, tornar apático e sem força para cumprir o dever ( o padre manda o seu sacristão atender os fieis em seu lugar). Entretanto, a história demonstra também que roda imagem é ambivalente. O mesmo sol, a mesma natureza que mata sabe vivificar ,Cá e acolá, no desvio de uma página do romance, pinta o sol duma aurora bonita, dum crepúsculo insólito se tornar convidativo e cúmplice de uma euforia que ritma as paixões de amor, encoraja Eleonora a acreditar loucamente que poderá desviar da sua corrida ao altar o seminarista Deuteronômio. O mesmo acontece com Crisálidas: por que não ficar comigo namorando para sempre nesta decoração que a Mãe Natureza preparou para nos; joga no lixo a batina e as babaquices da Igreja! Deu o que deu: a queda num buraco moral.

Chegamos assim às imagens oníricas.

Elas vão acentuar a queda por uma transferência do cenário externo no interior da psique do personagem. O mal vira menos palpável, por que ele elege domicilio dentro do ser, se alimenta pela sua própria energia interna. Assim o buraco de tal “locus amoenus” identificado lá fora na Natureza e a dança do desejo que ele suscitava nos namorados, passa na narrativa a ter construções paralelas numa outra cena. Nos sonhos, entregue a si mesmo e à fúria da fantasia e do desejo, Deuteronômio gozou de vários sonhos hiper-eróticos indignos de um padre: mais uma queda, em buracos invisíveis desta vez.O mais significativo sonho de Crisálidas descrito na narrativa se efetuou num “locus horrendum”. Foi talvez um pesadelo, a não ser um modo disfarçado de autopunir-se ou de gozar masoquistamente. Aconteceu numa parte do enredo onde o amor de Deuteronômio resfriava e desabava. Os elementos mundanos que intervém no cenário interno da psique são emprestados da noticia televisiva de um Deuteronômio refém de bandidos perigosos. O que reforçou o medo da perda do amado. As imagens oníricas de violência sobre a pessoa do padre, de brutal estupro de Crisálidas repetido por cada um dos facínoras apontam talvez em duas direções: de um lado,a compensação de desejo reprimido e em perda da intensidade antes experimentada; de outro lado, a premonição da saída total e odiosa do padre da sua vida de menina ameaçada pela loucura. Este sonho sanciona o desastre de uma vida que deu uma guinada em direção daquilo que sua recalcada educação cristã denominou de inferno.

Para Ricoeur, como para Wunenburger, o que seriam as imagens poéticas deve jorrar como as imagens divinas ou as da profecia da profundidade do ser. Normalmente, elas rompem radicalmente com a exterioridade. Portanto, são imanentes. A imagem onírica se abastece na fantasia e naquilo que se chama “restos diurnos”, ou seja, fatos da vida cotidiana anteriores aos sonhos, eventos de que fomos testemunhas ou que nos foram reportados, como por exemplo pela Televisão. No caso do pesadelo de Crisálidas, a noticia mostrou o seqüestro do pai e do padre (A associação dessas duas figuras paternas, o segundo em posição de xamã no texto, daria lugar a considerações psicanalíticas em que não entraremos aqui). O buraco físico, o buraco máximo posto em abismo na situação do padre, só aparece perto do fim do enredo. Mas é oportuno antecipá-lo agora , pois ele concerne à nossa reflexão sobre a natureza das imagens poéticas. Aliás, Ricoeur não coloca divisão estanque entre suas três categorias de imagens. As duas primeiras (as cósmicas e as oníricas) são comprometidas as primeiras inteiramente, as segundas parcialmente com algo de físico, Contudo mantém uma relação misteriosa com as terceiras, as imagens poéticas, que são em principio irreferenciais, sem relação com a exterioridade. Quando se trata da Falta ou da Queda humana, ou seja, da Simbólica do mal, estamos falando de tais imagens transcendentes, cale dizer inacessíveis á razão, à explicação. O mito providencia a compreensão, não a explicação, segundo uma distinção cara à Hermenêutica de Paul Ricoeur.

Vamos descer a algo mais concreto antes de perseguir a natureza dessas imagens poéticas e míticas.

Ousaríamos avançar que a trajetória de Deuteronômio exibe uma sucessão de quedas que se iniciou com a entrada no seminário e que teria seu ponto mais baixo (e não de apogeu, se tratando de buraco) naquela queda que anunciamos há pouco como sendo o buraco mais profundo. Esta sucessão de passos em falso começou pela entrada no seminário de um rapaz ingênuo; ele não tinha a vocação religiosa, só um concurso infeliz de circunstancias o empurrou para onde não devia. Essa primeira mancada será seguida de muitas outras menos notáveis, mas que todas concorrem a colocar em alto relevo o crucial problema da liberdade humano, do destino humano, do mal igualmente. A narrativa de David enfatiza a relação amorosa com Eleonora, a paixão incontrolável por Crisálidas, os sonhos descabidos, a ida ao Bordel numa noite tediosa e de calor intenso. Por trás de tudo isso trabalha a problemática do mal e do destino: lócus amoenus , lócus horrendum dão no mesmo, neste respeito, quando se trata de Deuteronômio. Passando por cima de diversos outros marcos pecaminosos, chegamos novamente à queda crucial. Entrou no palco textual quando os Bandidos decidiram matar o padre. Este fugiu, sob uma rajada de balas, num bosque. Ficou seriamente ferido e pendurado num ramo de árvore pelas suas roupas, antes de cair desmaiado num buraco fundo, quebrando a perna Por chance, os bandidos o estimando morto se mandaram No despertar, sentiu que havia quebrado a perna. O que complica a sua sobrevivência num lugar de onde não existe possibilidade de serem ouvidos os seus gemidos. Sua angustia de morrer aumentou ao olhar lá em cima nas árvores mais altas um bando de urubus que batiam alegremente as asas ao cheirar provavelmente o seu sangue. Passaram dias e dias sem água e sem comida. `

Pulo sobre os detalhes dessa agonia durante a qual o Padre recapitulou mentalmente a sua vida, fez um balance entre perdas e ganhos. Um dia onde excepcionalmente a Natureza estava em sua melhor roupagem e muito convidativa, ao correr atrás de uma ave, aquele jovem bóia frio chamado Menino (o seu filho ainda desconhecido), caiu por puro acaso no mesmo buraco mas sem se ferir e a um nível menos profundo. Era o dia da salvação. Deuteronômio remontará dos infernos quase inconsciente, sem saber identidade de seu salvador. Esta foi a maior e a última grande queda de ordem física. Mas coroando as anteriores, ela lhes conferirá a sua plena significação, graças principalmente à anamnese, o doloroso exame de consciência facultado por dias de imobilidade e de desespero. Esse monólogo interior de Deuteronômio entre a vida e a morte merece uma leitura detida. Mas não é apropriado fazê-la agora.

Antes de chegar a esse texto capital e de tão grande relevância simbólica para o sentido da trajetória do personagem e portanto do livro no qual ele está em papel de protagonista, convém explorar primeiro os lugares de emergência das imagens qualificadas por Ricoeur de poéticas.A esta categorias pertence as imagens as simbólica do Mal. Aqui surge um grande problema: o que pode ser essas imagens? Pois o autor, não sendo o Espírito Santo, não pode comunicar conosco sem passar por signos, sinais, imagens como meio de transmissão.

É toda a nossa concepção de imagem e de mito que está aqui implicada. Dizem que o mito é uma narrativa que possa servir de meio de transmissão daquilo que dizíamos, no começo, é inaudível e incorpóreo. Portanto, se as articulações temporais e espaciais, mais os personagens e as suas ações constituem um mito, não fica ainda claro para nos como vamos identificar a metáfora, o símbolo que ele apresenta sem representar. Se tudo é palavra, a imagem poética é uma palavra; enquanto tal, remete a um referente que, pela definição ricoeuriana, deveria paradoxalmente desprovida de remissão externa.. Isso nos leve a uma analogia como os mitos gregos. Como se referencializaram naquele tempo? A não ser fantasias tornadas crenças, como procederam com seus deuses deusas, ou quando falaram do Centauro Quiron?

Será que os Gregos tomaram realidade como crença, e crença por realidade, eles que criaram filosofia e ciência? Chamo a atenção aqui sobre o livro do famoso mitólogo francês Jean-Pierre Vernant (que não li): Les Grecs ont-ils cru à leurs mythes/ Será que os Gregos acreditaram em seus mitos?

Vamos admitir provisoriamente a hipótese de que , assim como as imagens poéticas, as crenças, a fé vem antes de mais nada de dentro, as referencias externas como as estátuas, os templos aos deuses ou deusas só vem depois. É por acreditar primeiro neste deus ou nesta deusa certos fieis lhe dedicaram um templo. Diria também que lhe atribuíram um NOME.

Chegamos mais uma vez ao campo da palavra que dá sustentação ao cenário mítico. E novamente voltamos a ser perplexos.. Estamos nos perguntando mais uma vez: existe palavra a-referencial para liberar o mito ? Como vou identificar a imagem do mal enquanto imagem-palavra, quando deixo de me apoiar nos signos da natureza e nas percepções oníricas, como eu fiz para o Sol, a chuva/ água, os elementos?

Ricoeur deu uma dica ao deixar a entender que as palavras “sujeira, carga, desvio” não traduzem o inominável da falta, do pecado, da culpabilidade. Portanto o mal, que as subjaz não acede à dizibilidade. Só valem estes termos como remotíssima analogia. Entretanto, assim como o símbolo, a analogia está comprometida com algo que conhecemos e que aponta para algo que não conhecemos e que não podemos exprimir. O “mal” não seria esse Diabo ou esses diabinhos que vem assediar a mente de Deuteronômio amante, Deuteronômio seminarista, Deuteronômio padre? Um ser sem corpo, sem identificação referencial ou ponto de remissão na realidade nossa, mas que, apesar de tudo, a arte de escrever, de construir mitos torna presente fisicamente, faz existir e se movimentar sob nossos olhos, faz falar ao nosso ouvido, faz proferir cadeiras de enunciados, atribuindo-lhe no âmbito das linhas e parágrafos posturas enunciativas, ferrenha competência argumentativa e habilidade impar de polemista. Evidentemente, a magia do escritor conta com as crenças do leitor, assim como ocorreu provavelmente com os narradores de mitos na Grécia antiga.

ADDENDUM À APOSTILA ANTERIOR PARA 10/05/2010

Para avançar um pouco no debate, retomamos o pressuposto emitido no término de nossas considerações sobre o xamanismo, a saber que os lugares por excelência para se observar as imagens poéticas são provavelmente as passagens d´O Sol dos Trópicos onde o diabo dialoga com Deuteronômio e também monta um cenário de circo para assediar a mente de Tonico infante e guiar sua mão, sua boca, seu corpo no caminho do crime, com o super-apoio da mãe do menino já possuída há lustres pelo espírito do Mal.

io.

No entanto, outras interpretações são possíveis. Penso em particular à hipótese da testemunha interior. Já disse que o psicanalista Jean-François Chiantaretto a desenvolveu em um livro inteiro ( Le témoin interne.PUF,2005). `Para este psicanalista o testemunho interior seria”uma figura intrapsíquica representado o olhar do outro, sendo este outro a instância que confere existência ao sujeito humano.”. Jacques Lacan por seu lado postulava um grande outro que rege a nossa entrada na linguagem e presidia a nossa investidura de sujeito, de ser social. A essas hipóteses assaz parecidas emas diferentemente orientadas em sua intencionalidade, se junta uma outra de raiz fenomenológica, orientada para a escritura do eu poético e do eu narrativo.Foi formulada em termos assaz parecidos pela estudiosa Claudie Gagné, em um trabalho sobre os poetas Paul Celan e Henri Michaux intitulado “A partir de Celan et de Michaux: Le soi traversé par l´Autre” (In Jean Leclercq et Nicolas Monseu,dir., Phénoménologies littéraires de l´écriture de soi.Dijon:´Rditionns universitaires de Dijon,2009,p.158). Depois de defender a idéia de que “o sujeito é um efeito de escritura”, que tem sempre “de l´autre”/ um outro obrando no falante, que há sempre o peso do inconsciente operando no ato de fala, Claudie Gagné conclui que a alteridade está presente “na tessitura polifônica da linguagem” dos sujeitos de fala, que só posso dizer “eu” “na medida em que me situo em um face a face com um Outro internalizado com que eu me constituo em parceiro de diálogo, um outro que por sua vez me devolve essa parte de estranheza e de desconhecido que existe em mim”. Assim encarado os diálogos entre Deuteronômio ou o menino Tonico e o diabo, são uma magistral teatralização da consciência ética destes personagens e uma ilustração dostoievskiana e bakhtiniana da pluralidade de ser dentro de uma mesma voz. É um evento lingüístico e retórico que exibe na externalidade de uma construção dialógica aquilo que de fato é o monólogo de uma mente em sua pluralidade de facetas discursivas e de posições opositivas ocorrendo na simultaneidade. O múltiplo está no Um, e a justaposição de dizeres é apenas uma pedagogia instituída pelo ficcionista para fazer sentir ao seu leitor o drama da consciência num determinado instante de sua vida. A teatralização se inspira nas cenas forenses. Um tribunal reúne os traços distintivos que são: um espaço, um arbitro, um litígio, juízos opostos colocados no fiel da balança, etc. A arte narrativa de David Gonçalves arrola tudo isso. Os seus diabos são apenas hipóstases da consciência moral instituindo uma sorte de tribunal interior no mais íntimo do ser humano, no qual atuam advogado de defesa e advogado da acusação ou procurador chamado vulgarmente “advogado do diabo”. Trata-se implicitamente do debate teológico sobre a liberdade humana, como Ricoeur soube o colocar assim como Leibnitz. E a decisão a tomar é dilacerada entre as forças da Liberdade e da Necessidade. Mas in concretum a necessidade simbolizada pelas pulsões, pela carne parece levar sobre uma vontade fragilizada por uma culpa ancestral reatualizada nos atores da sociedade de Quadrinculo que são interpretativamente actantes de uma tragédia humana de maior alcance. O apostolo Paulo já tem pautado e traduzido isto numa dialética: “a carne milita contra espírito e o espírito milita contra a carne. Áie de nos !!! nesta interminável guerra se o Espírito Santo não vier nos socorrer .” O fato é que mesmo com este socorro, a liberdade como faculdade de escolher fica. Por isso, existem sujeitos como o facínora Tônico no enredo do Sol opta por seguir o ditado das pulsões mais negativas ao passo que Deuteronômio optou finalmente pelo triunfo das pulsões positivas. Com este, que é o protagonista do SOL dos TRÓPICOS, o desfecho da história é de esperança, de vitória do espírito do bem, - uma mensagem de esperança, mesmo para os bóias frias num tempo por vir, numa utopia do social.

Este finale se assemelha àquele que a ópera goetheana Faust, nos prepara na próxima leitura deste curso.

No entanto, o destino cruzado de Deuteronômio e de Eleonora deve provavelmente lembrar a certos leitores O Crime do Padre Amaro, de Eça de Queiroz: de um lado, um jovem padre e do outro um seminarista; de ambos os lados uma bela moça..Mas houve recusa do aborto sugerido por Deuterônomio por parte de Eleonora que pagou com sua vida o nascimento do filho, ao passo que o aborto planejado por padre Amaro aceito a contra-gosto pela sua amada acabou pela morte desta. O que mais nos interesse é arrependimento final e o feliz reencontro no desfecho entre Deuteronômio arrependido e seu filho bóia-fria, a sua ruptura radical com o mundo dos Poderosos e bem abastados, ao passo que o Padre Amaro sempre protegido pela alta sociedade se juntou ainda mais a ela ao voltar para a capital Lisboa. Portanto, David Gonçalves não reescreve Eça de Queiroz sem uma belíssima traição que consiste em um salto de gigante conscientização social, contemporânea das empresas do Abade Pierre na França e dos Teólogos da libertação no Brasil.

Programação:

Da página 5 até a página 292, fora lido o essencial.

Resta a CADA UM percorrer o indispensável da página 292 até 387, e preparar um comentário para a aula de 10 de maio.

A Aula de 3 de maio está cancelada, a fim que sejam cumpridos comentário e leitura final.

Obrigado.

Professor Sébastien.