Sébastien Joachim

Este blog é um meio de comunicação entre o professor e seus alunos.

domingo, 28 de março de 2010

MITOS E IMAGINÁRIO


Daniel-Henri Pageaux (Université de Paris IV)
Sébastien Joachim (tradução e notas), UEPB-UFPE



MITOS
Diferentemente dos temas e das imagens, os mitos são uma conquista relativamente recente do comparatista. Há meio século, a respeito de Don Juan, fala-se mais de “lenda” do que de “mitos”: nisto, a literatura comparada seguia a via traçada pelos folcloristas dedicados ao estudo de contos, lendas e mitos. A pequena História das lendas publicada na coleção “Que-sais-je” (nº 670), põe todavia em destaque Faust e Don Juan como dois pilares da “mitologia comparatista”. A anexão recente explica talvez o que Pierre Brunel chama, no prefácio a seu Dicionário de Mitos (ed. Du Rocher 1988), de imprecisão terminológica que não será jamais totalmente corrigida .
É significativo o fato de que dois co-autores de manual de Literatura Comparada, Pichois et Rousseau, tenham inscrito, sob a rubrica “tematologia”, um certo “imaginário”(maravilhoso folclórico, fantástico livresco e mitos) que opõe-se a um segundo conjunto, chamado “Real”. Este teria como componentes: “tipos psicológicos e sociais”, “personagens literários”, “coisas e situações”. Seja qual for, “o comparatista está aí em país conhecido”. Não ironize apressadamente acerca desse “país conhecido”, cujas fronteiras parecem bastante incertas. Assinalamos porém que se tem falado em “temas míticos”: o autor desta indevida aproximação é Raymond Trousson que, de fato, hesitou entre os dois termos ( temas, mitos) antes de distingui-los, de 1965 a 1981. Por sua parte, Yves Chevrel gosta de referir-se a Édipo, Don Juan, Prometeu e Werther, como “figuras míticas”. Com certeza, o mito interfere com o tema, o sujeito, o motivo, a imagem, o símbolo , o tipo.
É não menos certo também, como nota Pierre Brunel, que a literatura comparada deve rever sua terminologia vez em quando, “para refiná-la”; mas as questões de terminologia ocultam amiúde problemas de método. Temas, mitos e imagens, figuras, motivos, são partes de um tudo: o texto. Todo mito é, lato sensu, um “tema” do texto, mas todo tema não é mito, apesar do fato de que temas e mitos são estruturas do texto. Daí a questão dúplice: O que é mito literário? O que é o mito, na perspectiva da Literatura Comparada?

DO MITO AO MITO LITERÁRIO
O mito pertence aos folcloristas, aos antropólogos, aos historiadores das religiões e aos sociólogos. Estes lhe atribuíram em geral conotações pejorativas (os mitos publicitários ...).
Em Mitologias (Seuil, 1957), Roland Barthes apresentou uma coleção de ensaios sobre o imaginário da França nos anos 50 – 60. Há também o mito “primitivo” dos etnólogos ou dos antropólogos, ainda prometido à longa vida na Literatura, já que se falará de “situação fundamental” ou de “situação humana exemplar para uma coletividade” (cf.André Darbezies, na conclusão de Visages de Faust au XXe siècle, PUF, 1967).
É algo tentatório, até esclarecedor, falar em “situações fundamentais” a respeito de um pacto com o diabo (Faust), de um castigo (Don Juan), de um sacrifício ( Ifigênia), de um desrespeito da morte da parte de Don Juan ou de Antígona. O literário (o comparatista) estudará, portanto, esquemas essenciais, provavelmente porque são antes de tudo fabulas já estruturadas no momento em que aparecem as primeiras versões literárias, sendo estas textualizações de histórias colocações em palavras. Essas passagens à escritura variam de uma cultura à outra, de um século ao outro: vê-se logo a semelhança com o tema e a diferença que parece ser o caráter fixo, diria-se “esquemático” do material utilizado (Nota do tradutor)
Assim como o tema, assim como a imagem comparatista , o mito é um material a partir de que se elaboram os textos estudados: tema, imagem, mito, são, para o comparatista, a matéria (como se diria no Brasil, a matéria do Sertão em Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, José Américo, etc.).
Mas não existe matéria sem forma (ou forma sem matéria): Essa osmose ao mesmo tempo evidente e tão delicada a estudar encontra talvez com o mito uma solução original e eficaz.


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DO MITO ETNO-RELIGIOSO OU MITO LITERÁRIO
A passagem dos mitos primitivos, matéria de religiões, crenças, para a Literatura tem sido considerada como um processo esclarecedor de passagem do sagrado ao profano.

1. DO SAGRADO AO PROFANO:
Sagrado, profano são os dois pólos do pensamento de Mircea Eliade (Aspects du mythe. Gallimard, 1963; Le Sacré et le profane, Gallimard, 1965). Podemos pensar também em Denis de Rougemont (L”Amour et l’Occident , 1939. col. 10/18) e em Claude Lévi-Strauss. No entanto, Lévi-Strauss considera o mito literarizado como “o ultimo murmúrio da estrutura expirando”... O comparatista Pierre Brunel sublinha o papel capital preenchido pela literatura e pelas artes ( em nossos dias pelo cinema): o de ser “um conservatório dos mitos” ( cf. para a televisão, o livro Mito e Comunicação, da autoria de Arthur da Távola,um Congressista brasileiro). Porém, se o mito “literário” subsiste é pela sua impregnação literária. Pois, o mito”literário” acrescenta ao mito primitivo significações novas. Como disse tão bem Pierre Albouy, não há mito literário sem uma “palingenesia” (renascimento, denegação) que o ressuscita numa época em que ele se revela apto a “expressar da melhor maneira os seus próprios problemas”. (cf. Mythes et Mythologies dans la Litterature française. A. Colin, 1969, reed. 1980).
Existe aí um convite a empreender um estudo comparativo e também comparatista: ressaltar as retomadas e as variações, e também permanências, presenças em certas épocas, assim com certas ausências em outras épocas, da parte de certos escritores; presenças ainda vivas de mitos antigos, mas igualmente eclipses e prodigiosas adaptações. Para a literatura, para o seu imaginário, o mito é bem uma historia dinâmica e exemplar, coletiva e também individual.

2. SOBRE ALGUMAS DIFERENÇAS ESSÊNCIAIS
Philippe Sellier colocou entre mito “etno-religioso” e mito literário algumas diferenças essenciais (Littérature, 1984).
2.1. O MITO “ETNO-RELIGIOSO” é uma narrativa fundadora, anônima, coletiva, tida por verdadeira e que, quando analisada, aparecer fortes oposições estruturais. Quando esse tipo de mito passa para a literatura, ele conserva a “saturação simbólica”, a organizações densa e a colocação metafísica, mas ele perde seu caráter fundador, verídico, e as obras são assinadas por um autor.
2.2. Existem outros mitos, narrativas exemplares também, nascidos da literatura: Tristã e Isolda, Faust ou Don Juan. E há em literatura “elementos míticos” tais como o filtro de Medeia, o pacto com o diabo (Faust) ou estátua de pedra (Don Juan).

2.3.MITOS DE CIDADES, TAIS COMO VENEZA
Outras manifestações literárias do mito podem ser apontadas, as imagens-forças dos sociólogos ( o Progresso, a Raça, a Máquina...) que se revelam, com efeito, “capazes de exercer um fascínio coletivo assaz comparável àquele dos mitos primitivos”.
De fato, se tal personagem histórico se torna “mítico”, se Napoleão aparece como um novo Áquiles, um outro Prometeu ou “o ógro da Córsega”, o que importa é essa possibilidade de efabulação na consciência comum. Mitos são bem “tudo que a literatura tem transformado em mitos” (P. Brunel). Ou mais precisamente talvez: tudo aquilo que uma cultura conseguiu transformar em mito.

2.4. A MITIZAÇÃO
O mito como acabamos de colocá-lo lembra primeiramente a idéia de tema, o qual é principio de organização,de estruturação de um texto; por isso a mitização vai designar um processo de constituição de um texto em material significativo de pesquisa criativa. Em outras palavras, a mitização é uma atividade interpretativa captadora do mito literário no perpétuo devir deste enquanto objeto de estudo. O mito literário, no seu sentido mais forte, é um “pré-texto”, um “ante-texto” (ele leva a criação de alteridades). No caso dos mitos antigos esse ante-texto fica na dependência da tradição oral (“um etno-texto”). Ele é uma história que “entra” na literatura. Orfeu e Napoleão foram antes “pré-textos” antes de se tornarem uma ópera de Monteverdi e um romance de Tolstoï




Como se vê, ópera e romance têm servido a acrescentar à mitização ou à tradição mítica.
O mito seria talvez um tema que percorreu uma trajetória, do mesmo modo que palavras, estereótipos, imagens (cf. cap. 4) se tornaram cenários. Se, tal como aparece, isso se comprova, essa transformação, ou mitificação/ mitização, seria provavelmente uma conseqüência da natureza do mito enquanto história capaz de ser retomada por várias gerações em razão de sua multisignificância. Ou não seria também devida, essa transformação, à função que ela mesma ocupa ( o mito sendo uma história que pode ter relações com uma alteridade por seu valor exemplar e explicativo, por exemplo no caso dos mitos antigos que compõem uma religião, i.e. etimologicamente algo que liga ) ? Pode-se supor também que a natureza do mito (literário ou não) foi de exercer essa função particular de relação. A questão fica aberta.

3. DE UMA MITOLOGIA À OUTRA
Tomaremos como ponto de partida de nossas colocações um pequeno artigo do helenista Jacques Bompaire. Neste artigo, ele examina o mito tal como aparece na Poética de Aristóteles à luz do estruturalismo definido por Jean Piaget. (cf. Formação e Sobrevivência dos Mitos, Colóquio de Nanterre [1974], Paris, Les Belles Lettres. 1977).

3.1. O MITO COMO ESTRUTURA
Da “estrutura”, o mito conserva as três características escolhidas por Jean Piaget: a totalidade, a transformação, a auto-regulagem. O mito, segundo Aristóteles, é bem “synthesis”, isto é, organização concebida como totalidade, totalidade orgânica. Ele sofre, porém, transformações, seu conteúdo pode ser modificado, e pode-se dizer que este conteúdo é essencialmente movimento. Mas o mito regula a si mesmo, de modo a assegurar sua própria conservação. Os elementos indispensáveis a sua estrutura têm de subsistir: senão, a estrutura desaparece e cede o lugar a uma outra. O mito é um sistema, um conjunto coerente, dinâmico, que evolui em função de exigências, de parâmetros internos próprios.
Reencontraremos assim a Literatura, ou de preferência o poeta, perante um dilema indicado por Aristóteles (Poética, XIV): o poeta não pode modificar os mitos recebidos como herança cultural, e no entanto ele deve se mostrar inventivo. É o principio fundamentalmente dinâmico (talvez dialético) da mimesis, um principio que não se confunde com a imitação. Assim, descobrimos que o mito oferece a sua maneira uma sorte de imaginário sob controle Podemos então nos lembrar do texto mais ou menos “programado”, um “pré-texto”... O mito é para a literatura, uma historia programada, um pré-texto. André Siganos fala de “sintagma minimal do mito”, sem o qual não disporiamos de apoio estrutural suficiente para construir o mito nem meio para reconhecê-lo como tal numa historia retomada pela literatura (cf. O Minotauro e Seu Mito, PUF., 1993). Existe decerto uma lógica de mito que é, por sua vez, uma coerção para novas formulações: estas podem ir até contradizer o “texto” inicial: um Don Juan salvo e não castigado, uma Ifigênia salva e não sacrificada. Mas o esquema invertido – ou parodiado – supõe a existência e o reconhecimento do esquema que serviu de modelo.

3.2. O MITO COMO HISTÓRIA
A partir de quando poder-se-á falar em mito de Napoleão? Quando uma história “segunda” duplicará a “verdadeira” história, numa narrativa estruturada: a “lenda” do Imperador Napoleão, os Anais fabulosos do Império. Essa narrativa “segunda” se alimenta como o mostrou Jean Tulard (Le Mythe de Napoleão, Colin, 1971), de mitos pré-existentes, necessários à mitização: e.g. paralelos possíveis entre o “destino” de Napoleão e a figura de Cristo, cruzamento com o mito de Prometeu, “parasitagem” (ou exploração) do estereótipo do Ogro. O estereótipo muda-se em figura mítica, quando ele se torna narrativa, história, portanto tematização, que aqui se chama Mitização. Tal é o trabalho de escritura de um Chateaubriand no seu panfleto De Buonaparte et des Bourbons (1814), uma história “negativa” naquilo que narra, mas “positiva” do ponto de vista da função que ela ocupa no imaginário da época. (No Brasil, cabe nesse tipo de estudo: a figura de Getulio Vargas nos romances de Érico Veríssimo, Rubem Fonseca, etc.; a figura da mulata, do Realismo até a era recente, ou na Canção popular; no Romance hispano-americano, a representação do povo; a do estudante em G. G. Márquez e Alejo Carpentier; a figura do ditador Rosa em Eu o Supremo de A. Roa Bastos : Nota do Tradutor).
A história mítica, a qual tem a característica de poder ser negativa ou positiva, teve, dentro de certos limites, para certas gerações, um papel, uma função comparável àqueles que os antigos mitos tiveram provavelmente na cidade antiga e ao olhar dos poetas. No caso de Napoleão, a mitização tem seus marcos e seus nomes: Byron, Beethoven, Goya, Karl Marx, Tolstoi, aos quais se adicionam os de Chateaubriand, de Vigny, Hugo, Aragon e o cineasta Abel Gance.
Se tratando de mitologia quer “antiga” quer “moderna”, o mito é uma história viva para os que a recriam, a escutam ou a lêem. Uma história mítica não utilizada pode continuar a ser nomeada “mito” numa perspectiva largamente diacrônica; mas ela para de ser mito a partir do momento que não mais constitui um componente da cultura, da literatura estudada. Ela volta a se tornar mito quando a referência se encontra reativada, quando ela trás uma nova historia que nutre o imaginário (ex.: a saga do quilombo no Brasil negro de hoje).
À cada época, seus mitos privilegiados, sua mitologia. Neste sentido, tanto os mitos como os temas podem servir para enriquecer e nuançar a historia das literaturas.
Pode-se falar de mitos de época, como já tem-se falado de temática de época. C. M. Bowra, com The Romantic Imagination (Oxford Univ. Press, 1969, retomada de conferências de 1948-1949), fornece uma contribuição já antiga, quase clássica, para o estudo da “imaginação romântica”. Encontramos aí lado à lado obras e “faróis”, estudos temáticos e perspectivas míticas (Don Juan, Prometeu). Em Fin de siècle. Gestalten und Mythen (Munich, W. Fink, 1977) Hans Hinterlauser reuniu alguns dos componentes de uma mitologia finissecular ou decadente: a volta de Cristo, as cidades mortas, a rebelião dos dandys, as mulheres pré-rafaelitas, os centauros... O Cristo fim-de-século, como seu predecessor (cf. Frank Bowman, Le Christ romantique, Genève, Droz, 1973) são temas que se configuram com cenário codificado (“o que aconteceria se ele voltar e refizer as mesmas coisas?”) e com valor exemplar para uma ou várias gerações.
É preciso portanto estudar como o tema ou o tipo, a imagem, o feixe de imagens, ou por vezes a palavra podem se transformar em história, se tornar estrutura - conjunto de elementos constituintes e de variantes-, compreender o papel exemplar que essa história tem podido haver para suscitar repetições, retomadas. Tal “história”, tal “figura” se torna exemplar no seio de uma certa cultura, e todavia não passa de uma presença limitada e de segundo plano em outra cultura. Maria Soledad Carasco Urgoiti, num estudo remoto, justamente reeditado (El Moro de la Granada em la Literatura, Revista do Ocidente, 1956, re-edição. Archivum, 1989.) estuda principalmente um caso de “maurofilia literaria” (“mauromania” seria melhor), a mitização do último “abenceragem” (tipo de ameríndio). Essa figura conheceu seus dias de gloria e de eclipse na Itália, na França no século XVII, e ainda inspirou Chateaubriand no século XIX assim como, mais recentemente, o romancista americano Washington Irving. Mas ela fica ligada à viagem, a Granada e ao “mito” do Alhambra.
Não há, com certeza, permanência ou universalidade do mito: os mitos gregos só demonstram o que se dá como universalidade em virtude da hegemonia cultural da Europa, herdeira inspirada nessas histórias. Em contrapartida, existe uma vida, uma sobrevivência, ressurreições de mitos antigos, surgimento de novos mitos uma convertibilidade de antigas histórias em versões modernas, coalescência sempre possível de certos elementos ou figuras míticas em histórias que a literatura, entre outras artes e outros discursos, contribui a tornar exemplares.

4. PARA UMA DEFINIÇÃO DO MITO LITERÁRIO
Pierre Brunel, em suas pesquisas sobre o mito retomadas no Dicionário de mitos literários (já citado) distingue três elementos de definição possíveis do mito, que ele denomina aliás funções.

4.1. O MITO-NARRATIVA
O mito narra uma estória/história, ele é uma narrativa. Assim opõe-se, em Platão, ao diálogo, à discussão. A idéia do mito como narração, como cenário ( o que nos leva de volta a Levi-Strauss, ou à imagem quando ele entra na literatura) reenvia às perspectivas estruturais de um Tomachevski. Este teórico formalista define o mito como “sistema de motivos”. A história peculiar que é o mito produz reiterações, retomadas de elementos( o que Levi-Strauss chama de “mitemas”. Pierre Brunel relembra oportunamente a definição do mito segundo Micea Eliade:
“ o mito narra uma história sagrada; ele relata um evento um evento que teve
lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos”.
Ou a de Gilbert Durand:
“um sistema dinâmico de símbolos de arquétipos e de schèmes
( organizações dinâmicas) que, sob o impulso de um esquema
(principio diretor), tende a se configurar em narrativa”.
Um esquema se tornando narrativa, tal poderia ser o primeiro elemento de uma definição simples e esclarecedora: ela ressalta a idéia de um “cenário mítico” ( sucessão de sequências ou mitemas.- Nota do Tradutor).
O cenário mítico do “mito” de Antígona é o seguinte:
• A oposição da heroína ao tirano;
• A interdição de sepultar um de seus irmãos;
• A violação desse interdito;
• O noivado com o filho do tirano;
• A condenação e a morte.
(cf. Simone Fraisse, Le mythe d’Antigone, Colin, 1974. George Steiner, Les Antigones, Gallimard, 1986).
Entre estes dados estáveis há lugar para “variantes”, signo mesmo da “liberdade , da vida, da literatura”, nota Pierre Brunel.
Acrescentamos: “signo também de uma coerção , mais ou menos forte, do imaginário quando este se volta para esse cenário.”
Esse constrangimento ou coerção é, em certos casos , muito real e pode ter, no plano estético, grandes consequências. Foi considerada legitimamente, a respeito da extraordinária fortuna crítica do Paradise Lost de Milton, que ela teve também como conseqüência de paralisar a imaginação dos que tentaram transcrever novamente a Gênese,na medida em que o poeta inglês ofereceu um cenário dramático, pinturas pitorescas, mas também, em contrapartida, estabelece uma verdadeira convenção com a qual era difícil rivalizar, isto é, inventar. Entre a Bíblia e Milton, a margem de manobra aparece muito estreita (cf. J. Blondel, ed. Le Paradis Perdu, 1966-1967, Minard, Lettres Modernes, 1967. Jean Gillet, Le Paradis Perdu dans la Littérature Française. De Voltaire à Chateaubriand, Klincksieck, 1975).

4.2. O MITO-EXPLICAÇÃO
O mito é uma narrativa-etiológica, fábula explicativa no mito da metamorfose de Dafné, na qual o nome reenvia à coisa. (cf. Yves Giraud, La Fable de Daphné, Essai sur um Type de Métamorphose végétable dans la Littérature et lês Arts. Geneve, Droz, 1969). O mito narra de que maneira a realidade é o que ela é, como se desenvolveu o mundo e quais tipos de relações os homens mantém com ele.
De modo mais preciso: o mito é explicativo no sentido de que ele é antes um saber que se pode inferir da história. Esse saber mostrará de que maneira o mito é organização de mundo: todo mito é história das origens, todo mito é fundador, é cosmogônico. No plano cultural, ele faz autoridade, isto é, ela é uma referencia mais ou menos permanente e que apela para repetição, pela ritualização.

4.3. O MITO-REVELAÇÃO
Se o mito tem como função a revelação , podemos dizer, por conseguinte, com Mrcea Eliade, que toda mitologia é uma “ontofania”, uma aparição ou epifania do ser. Se o mito indica o sagrado, o mito literário vai ser também uma “resposta” . Ao seguir André Jolles (Formas Simples, Seuil, 1981), Pierre Brunel soube discernir, entre a questão que o homem levanta e a resposta que é dada , o espaço possível de uma “forma” chamada “mito” .
Este algo , o chamado de “resposta” tem de fato uma dupla função: ética e compensação. O mito funciona como a grande história, daí decorre seu valor de história exemplar e de alcance ético. Da mesma forma como os mitos antigos deram coesão à coletividade que os aceitava enquanto base religiosa, ou enquanto linguagem simbólica, do mesmo modo está agindo o mito “moderno”. Joana d’Arc, Napoleão, Che Guevara, etc, têm um valor ético para a comunidade que se reconhece nessas histórias que eles protagonizam ( Le Penn usa estrategicamente Joana d’Arc como mito político...). Há portanto adesão coletiva a uma história que, de singular que ela foi (Zumbi, Gandhi, Padre Cícero,...) se torna coletiva. O mito não é uma resposta .no sentido habitual., mas no sentido da problematologia de Michel Meyer, onde resposta designa mais um ponto de passagem em direção de uma interrogação nova do que uma parada numa solução apaziguadora ou letárgica .
Em que sentido, em função de que “resposta”, o mito tem uma função de compensação? Diz o professor Pierre Barbéris a respeito do mito de Napoleão que ele é uma história segunda. Mais pertinentemente,o mito está em função de “resposta”, ao revestir o aspecto singular de símbolo de conseqüências múltiplas. Assim, o escritor que recorre ao mito questiona uma resposta, e a escrita se efetua justamente através desta interrogação a qual submete uma resposta, um cenário pré-existente. É absolutamente imperativo analisar , isto é, separar os elementos, identificar e delimitar as seqüências em que o mito se configura, toma figura, consistência A contribuição do escritor, da época, da cultura em questão tem que ser passada ao crivo.
O mito literário só pode ser estudado numa encruzilhada, habitualmente a de dois processos complementares: a conservação de um cenário e sua transformação pela qual podemos ler o trabalho e as escolhas do escritor. Se Claude Lévi-Strauss tem razão em afirmar que o mito é o conjunto de suas variantes, poderemos então propor que, em Literatura geral e comparada, o mito é também o conjunto das tranformações sofridas por um cenário, na ordem ideológica, estética, ou na dependência de um imaginário diferente do mito em suas versões anteriores acessíveis ao escritor. Cabe explicar também por que existe retomada, reativação de cenário, da parte de um autor ou de uma geração. Vem agora à tona a importância da proposição, aparentemente provocante, de Jean-Louis Backès (Le Mythe d’Hélène, Adosa, 1984):
“O mito não é matéria à interpretação, mas objeto de reconhecimento”.
De fato, a reminiscência (a relembrança involuntária) apela para a re-avaliação; sem interpretação (no sentido de reviver o processo da significação não no de atribuir um significado: Observação do Tradutor)), o risco é de cair na codificação, no clichê, no estereótipo, com reemprego apressado. O mito terá dimensão literária só se for fala viva.

5. PRINCÍPIOS DE UMA MITOCRÍTICA
Com cautela e reticências, Pierre Brunel aceita falar de uma mitocrítica em Literatura Geral e Comparada. (Mythocritique: Théorie et Parcours. PUF, 1992). E as três leis do comparatismo enunciados por ele oferecem úteis caminhos de reflexão. São as leis de emergência, de flexibilidade e de irradiação.

5.1. LEI DE EMERGÊNCIA
Trata-se de examinar as ocorrências míticas num texto, sem se limitar às ocorrências explicitas. A novela Colomba de Merimée torna-se rápido uma variante do mito de Electra. O trabalho de comparatismo se funda na identificação e em seguida na interpretação, e esta se apóia na história literária ( ou pesquisas de filiação histórica). Não esqueça que o mito deve “produzir” uma história ( o autor apresenta um caso, onde a referência é mitológica sem ser mítica)... A referência não pode ser uma metáfora obsessiva nem um “mito pessoal” à Mauron (Psychocritique). Há provavelmente no texto marcas ou vestígios de um mito, alguns indícios, mas a antiga fábula, ou seja o dado mitológico em filigrano do texto, não provoca automaticamente uma nova fabulação, ou uma amplificação ou extensão. Há emergência sem irradiações.

5.2.FLEXIBILIDADE
A noção de flexibilidade remete aqui ao grau de adaptabilidade e de resistência de elemento mítico ao texto que lança mão de um mito. A fase essencial do reconhecimento e também a da avaliação da resistência do “schème” que dinamiza todo mito requerem cuidado. Cabe ao leitor-pesquisador por em confronto o texto ao “schème” diretor do mito fundador, previamente estabelecido.
Esse esquema tem de ser descoberto por um trabalho de leitura inventivo das histórias, uma leitura apta a captar seus elementos recorrentes, as seqüências essenciais e constitutivas do mito, ou seja, como diz A. Siganos, o “sintagma minimal”. No caso do mito do Minotauro, três seqüências são postas à mostra por Siganos:
• A transgressão da ordem natural pelo nascimento do monstro;
• A ordem estabelecida: o minotauro age, ele é sujeito;
• O questionamento heróico: o minotauro “sofre”.
O confronto desse esquema com textos faz ressaltar suas possibilidades de “modulação” (Siganos). Há no texto estudado “uma presença outra”, diz Pierre Brunel.
5.3. IRRADIAÇÃO
Essa “presença outra” de Brunel deve ser obrigatoriamente repleita de significação. É a partir dela que se organizará a análise toda do texto. Mesmo o elemento mítico, se ele é tênue, latente, tem de ter seu poder de irradiação. Poder-se-ia partir do título, “signo debaixo do qual o livro ou o texto se processou”; pode-se partir também de uma epígrafe suscetível de “ pôr na trilha certa”. Por exemplo, o grito com o qual começa a segunda parte d’Aurélia de Gérard de Nerval: Eurídice! Eurídice! aparece como “uma referência dúplice ao mito e à ópera” (Brunel): a leitura é confirmada pela primeira frase (“Uma segunda vez perdida”) e pelo fim do texto.
A irradiação deve ser confrontada com a forma literária : o esquema do mito entra em competição, por exemplo, com o gênero literário (teatralização do mito, lógica mitológica e lógica romanesca...). Além do mais, o mito pode ser considerado como um “hipotexto” (Genette), isto é, um outro texto mais ou menos ocultado debaixo do texto que lemos. Isso pode haver uma conseqüência poética de longo alcance. O texto estudado pode virar um “hipertexto” em relação ao esquema mítico-hipotextual. O que incita a encarar as relações entre esquema mítico e texto como relações intertextuais.
Pierre Brunel chegou a propor duas fontes de irradiação “sob-textual”: uma é a obra de um escritor dado, na qual o mito se delineia e que irradia um outro texto, este texto em leitura, embora de forma não explícita; a outra se apresenta quando o mito mesmo, isto é, sua “inevitável irradiação” na “memória e na imaginação de um escritor é tão explícita que não requer de ser tornado explicita”. Mas como o mito é antes de tudo estrutura, terá que ser descrita a organização do texto, se quisermos produzir uma verdadeira leitura ; é indispensável proceder à “descrição da organização do texto””. E neste caso, diz Brunel, “cada qual faz análise estrutural sem o saber”.

6. NASCIMENTO E DESENVOLVIMENTO DO MITO LITERÁRIO
Falamos de nascimento e não de origem. É admitido que o mito (etno-religioso) já desapareceu ao passar do tempo. Em tal situação o que resta a fazer ao comparatista?

6.1. MITO E HISTÓRIA CULTURAL
O comparatista intervém à primeira grande transformação dos mitos antigos: a doutrina do Evemerismo (Évhémère acreditava que sob a figura dos deuses se encontravam mortais memoráveis). Essa doutrina foi retomada e cristalizada por Lactance em suas Institutions Divines; a doutrina fará uma longa carreira durante toda a Idade Média e ainda na Espanha no século de ouro tão repleta de fábulas e mitos “pagãos”. Tal é, por ex., a tese da Philosophia secreta de Juan Perez de Moya (5 edições entre 1585 e 1673) a do Teatro de los Dioses de la Gentilidad (1620) de Fray Balthasar de Vitória. O sistema de pensamento do siglo d’ouro explicita também a exploração poética das metamorfoses de Ovídio como modelos poéticos, as interpretações católicas do deus Pan (pan=pão), a fábula d’Eco e Narciso, lida por Sor Juana Inês de la Cruz em El Divino Narciso como figuração da igreja (Eco) amorosa do Cristo, ou a alegoria possível das parcas tecelãs por Velazquez.

6.2. HISTORIA MÍTICA E GÊNESE
Se abordarmos o terreno de uma certa história literária, é possível desenvolver diversos estudos diacrônicos que demonstram como se passa de um personagem ou de um tipo literário a um mito.
O exemplo do mito de Helena.
Estudado por Jean-Louis Backès, esse mito permite entender o nascimento e desenvolvimento sempre aleatório de uma história mítica. Uma constatação que beira o paradoxo: o mito de Helena “não teve muita chance”. Ele fica bem atrás d’Édipo, Faust, Tristan, ou Don Juan. Helena parece fadada ao episódico. “o único elemento constante seria o seu nome próprio: é pouco.” No entanto, o personagem não falta complexidade humana e ao mesmo tempo divina. A história de Helena poderia então aparecer como a da “possível presença do sagrado no interior mesmo de uma figura lendária”. Daí a pergunta: “o que pode se tornar um mito, um verdadeiro mito outrora vivo, quando se encontra prisioneiro nesta imensa maquina interpretativa: A literatura? “O que pode significar neste caso a sobrevivência de um mito? História “pobre” em aparência, ela resiste aos séculos, e Helena vivera, como diz Ronsard, “ao menos tão longo que viverão as penas e os livros”. O que volta a atribuir à literatura a função de repertório, de conservatório.

6.3. MITO E NASCIMENTO DE UM CENÁRIO
Talvez se possa ler em tal mito “pobre”, ou em outros que buscam impor-se, uma das trajetórias que oferecem ao imaginário “esses agrupados mitoïdes” (de que se falou antes) em expectativa de uma historia. O autor deu dois exemplos).
1. O mito do poeta infeliz
2. O nascimento literário de Don Juan (como passou da história onde era virtual,  para a literatura)
3. Mito e História.
Como um só texto, La Tragédie du roi Christophe d’Aimé Césaire, podemos ainda compreender, por um golpe de força poética e política, como o pai da negritude funda um mito e, fazendo isso, escreve a História exemplar do rei tirano Henri Christophe. A peça, que se conclui sobre a imagem do túmulo, inversa e procedimento trágico à francesa; é um drama da história, inspirado nos modelos Shakespeariano e Claudeliano, o qual é transformado no final, em história, mito, reescritura e resgate da História Colonial, uma duplicação da História de três séculos de escravidão e de vergonhosa deshumanização por uma história segunda. A imagem da Fênix é a última textualização, “mise em abyme” exemplar, para toda a raça negra: não há mito sem destinatário, garantia da sua exemplaridade.

7. POÉTICA DO MITO
7.1. GENERALIDADES
Para começar, é mister relembrar duas grandes características formais ou estruturais do mito:
- ele é uma narrativa
- ele é um esquema ( dinamicam,ente chamado de schème) ,e/ou um cenário
No seu livro Le Récit Poétique ( Gallimard, 1994), Jean-Yves Tadié estuda “a relação entre duas formas literárias”, “as variações entre dois sistemas”. As três possibilidades que ele distingue se aparentam às três “leis” de Pierre Brunel: ou a narrativa poética é “totalmente mítica” (irradiação), ou “ela integra mitos” sob forma de “narrativas encaixadas” (flexibilidade), ou ainda “a presença dos mitos é subterrânea” e se lê “através de certos episódios da história ou certos heróis” , ou também essa presença estoura em uma chuva de faíscas simbólicas” (emergência).
De fato, trata-se principalmente de mostrar que a narrativa poética, quando não utiliza, pelo processo de intertextualidade, mitos antigos (como fazia Jean Giono no começo de sua carreira de romancista), cria mitos novos (é o caso de Louis Aragon). A narrativa poética é “uma máquina de re-produção de sentidos ocultos”, melhor dizer: uma máquina de produzir sentidos. Ela se opõe, desta maneira à “narrativa realista”; mas a narrativa realista, quando é literatura verdadeira é mítica, demonstrou Henri Mitterand a respeito de Zola. É sintomático que a analise da narrativa poética, como de toda boa narrativa, evolui para a analise de símbolos e de sonhos. É preciso voltar à idéia de esquema (schème). Por ela, é mais fácil entender duas coisas: o estatuto da história mítica num texto, a solidariedade do texto estudado em sua estrutura com o esquema mesmo.
O nascimento do mito se confunde por conseguinte com a constituição de um “esquema” diretor, de um cenário para uma nova história. O trabalho de leitura crítica, o trabalho do poeticista, vai consistir prioritariamente em identificar o esquema mítico (as invariantes, os elementos constituintes), e depois em mostrar o seu funcionamento e as variantes.

7.2. LEITURA DO MITO
Várias veredas de leitura se oferecem ao comparatista: o trabalho sobre as estruturas do texto ( o esquema mítico), os problemas de intertextualidade (passagem de uma versão à outra, e presença de uma versão mítica por detrás de um texto), enfim, o trabalho sobre as questões de formas e de generos literários confrontados ao esquema mítico – “as metamorfoses laterais”, diz Jean Rousset em seu livro O Mito de Don Juan ( Paris: Colin, 1976). Este livro pode servir de guia para um novo tipo de leitura e um novo método de comparação dos textos....
7.2.1. MÉTODO ESTRUTURAL E SUPERPOSIÇÃO DE TEXTOS
Jean Rousset elabora um “cenário donjuanesco permanente” cujas unidades constitutivas, as invariantes, são três:
- o morto (sem o qual, narraria uma outra historia);
- o grupo feminino (“uma série de vítimas e uma vítima privilegiada”);
- o herói mesmo, aquele que “agride o morto” e que recebe o “castigo final”.
Talvez fosse proposital falar a respeito desta última variante, de castigo e não de herói.
Mais precisão sobre esta “invariante”: ela é o componente de um modelo; ela não tem portanto nenhuma ligação com as invariantes já encontradas até agora. As invariantes constituem uma abstração: “um dispositivo triangular minimal” que determina “ uma tríplice relação de reciprocidade” (Penso no mito de Édipo – nota do tradutor).
Jean Rousset propõe um “método estrutural”, mas não quer ser prisioneiro desse método; ele quer ler textos, dedicar seus esforços a micro-análises e a “superposições” de elementos, de seqüências, de unidades diversas; quer agregar essas unidades em feixes coesos ao longo do seu corpus, tratando as versões diacrônicas do mito como se fossem sincrônicas , isto é, sintagmas justapostos, a fim de chegar a inferir as principais combinações, isto é, a comparar.
Merece uma especial atenção o termo: superposição (de origem Lévi-straussiana e mauroniana). Se, de um lado, a constituição de um corpus é fruto de leituras, intuições, conhecimento, se ela funciona por contigüidade (efeito de vizinhança), por associações temáticas ou por associações de idéias, facilitadas aqui pelo nome do protagonista, logo por títulos identificáveis, de outro lado a elaboração do esquema, as comparações de texto a texto operam por superposição. Não se trata mais de vaivém ou de leituras laterais, de leituras em espelho ... A existência de um esquema, de um método de inspiração estrutural, aquela que preconizou Claude Lévi-Strauss (mas que Gilbert Durand criticou por sua rigidez: ela tende a bloquear o livre processo da imaginação).
7.2.3 INVARIANTES E VARIANTES
O modelo de três invariantes permite a filtragem dos textos e justifica a recusa de outros tipos de sedutores e de sedução (Casanova, Lovelace ... em lugar de Don Juan). Os textos são selecionados em razão de seu grau de pertinência em relação a um modelo, e não em função de suas qualidades estéticas.
Para tanto, a diacronia não é esquecida, nem a especificidade de cada texto ou a importância de “textos-carrefours”, como Don Juan (1815) de E. T. Hoffmann, onde se encontram três gêneros: uma narrativa, sua retomada da representação da Ópera de Mozart , Don Giovanni;
um ensaio outras tantas “viagens através sobre o personagem de Don Juan. A poética do mito se constrói com as diferentes leituras do corpus, como das formas”;
a invariante (que se torna ,pois, variante) da morte e do castigo de Don Juan. Esta se revela um dos tempos fortes do estudo de Jean Rousset.
Seria, porém, cair num estruturalismo caricato, se pensasse que todas as invariantes se valem. Mexer no “mitema” da morte, do castigo, é alterar a lógica primeira do mito, modificar seu conteúdo, seu alcance, sua significação. O trabalho poético sobre o castigo não envolve somente um parâmetro formal: ele diz respeito à matéria mesma do mito, o sentido que ele pode ter numa sociedade, em uma cultura dada.
O famoso e enigmático “meu salário, meu salário” do personagem Sganarelle, no Don Juan de Molière, lançado depois do castigo cuidadosamente encenado se encontra recolocado no final para lembrar que a peça é constituída segundo o principio do teatro no teatro. Na verdade é uma peça onde todo o mundo tem um duplo papel, uma dupla linguagem, onde o personagem de Don Juan e seus interlocutores, o par patrão/empregado não param de experimentar situações dramáticas. Eles se mascaram, a peça coloca constantemente Don Juan em situações dramáticas novas, face a personagens diferentes (o pai, um pobre, um aristocrata, perante dois irmãos ao mesmo tempo, enfim perante uma estátua).
A peça faz de Don Juan um personagem de comédia dentro da comédia (...).
O estudo poético do mito é esse tempo de leitura no decorrer do qual as informações da história convidam para, autorizam perspectivização ( mise en perspective), com a finalidade de uma interpretação. Isso pode ser chamado a lógica do mito, no mesmo sentido que se fala de lógica da imagem. Em ambos os casos, cabe inferir uma interpretação baseada sobre um cenário, uma fábula, sua elaboração em seqüências constitutivas, suas alterações possíveis, suas derivações (ou bifurcações) em relação a um esquema inicial. Estas merecem uma explicação: interna, quanto à economia do texto em estudo; externa, no que tange ao imaginário de um escritor, de uma época, de uma cultura.
8. MITO E IMAGINÁRIO
O mito literário, sob forma de texto, exige uma reflexão, uma interpretação da história sempre singular, exemplar, que foi re-desenrolada perante o leitor, o espectador, informado provavelmente, como o escritor, acerca de outras histórias anteriores ou paralelas, contemporâneas. Não há estudo do mito possível sem consideração sobre a recepção do mito.
8.1 RECEPÇÃO E INTERPRETAÇÃO
Como o notou André Darbezies, há mais Faust alemãos do que Joana d’Arc, mesmo se o mito francês tem sido objeto de uma obra de Schiller.
Os mitos provocam entusiasmo coletivo: houve, segundo Darbezies, uma faustomania na época do romantismo. Os mitos se interpretam: houve um escritor (Grable) que produziu um Don Juan und Faust em 1829. É bom notar que tais contaminações ultrapassam o simples jogo intertextual de temas ou de modelos. Os mitos se afastam de seu contexto de origem e se “naturalizam”.
Eles falam a língua do imaginário onde se radicam: o argentino Estanislao Del Campo compõe um Faust à Buenos Aires, peça em que um “gaúcho” assiste a uma representação do Faust de Gounod. Uma história mítica, pois, pode ocultar uma outra. Regularmente, a peça espanhol de Calderon, El mágico prodigioso serve de complemento a um programa sobre o mito de Faust: trata-se de um gosto perverso para “falsas janelas” (Pascal)... Mas todo pacto com o diabo não “produz” necessariamente um mito faustiano: Calderón retomou um fundo folclórico local e uma tradição nacional (em particular uma peça anterior de Mira de Amecua) e emprestou fartamente da Lenda Dourada(... )Portanto, cuidado e cautela(...).
8.2 UM REPERTÓRIO PARA O IMAGINÁRIO
O interesse maior do estudo do mito de Faust por André Darbezies (Le Mythe de Faust, Paris: Colin, 1972), reside na vontade de pôr em perspectiva a história de Faust e a história da cultura com a qual ela dialoga; de a pôr em paralelo às outras histórias oriundas da cultura ocidental (a de Don Juan,por exemplo) que ela ladeia e cruza, com as quais ela coexista: os mitos seriam portanto, assim como os temas, um repertório imaginário, em que podemos nos abastecer.
- A LEITURA DO MITO DE FAUST
No século XVII e no século XVIII, Faust tomou praticamente o lugar do tipo antigo do mágico e da bruxa. Ele confere a esse tipo tradicional sua “figura moderna”. A época romântica vai fazer antes de tudo com Faust “um Don Juan amoroso conquistador quando não um blasfemador elegante”. O que aproxima as duas figuras e as duas histórias, não é tanto a catástrofe que sanciona seu excesso quanto essa “aspiração ideal e ufanista” que elas encarnam aos olhos das gerações românticas.
Da mesma maneira que Faust cruzou Don Juan, o século XIX articulou o encontro de Faust com o judeu errante, o Manfred de Byron, Zarathoustra e Paracelse. Esses encontros e cruzamentos se explicam pela vontade de achar figuras e histórias nas quais a revolta, o tiranismo, as aspirações insaciáveis do ser humano possam caber uma forma, de resto, flexivel e suscetível de metamorfoses diversas (lei de flexibilidade de P. Brunel).
Mas é com Prometeu que o “contágio” se manifesta mais freqüente e mais profundo, o Prometeu da revolta, do progresso, aquele que promete ao homem sua “salvação com força própria”. Ora, escolher esse caminho, é deliberadamente privilegiar “um dos dois pólos do mito”, a saber “o dinamismo do homem”, e esquecer ou recusar “o limite trágico que marca o engajamento no mal”. A esta etapa, o mito de Faust toma toda a sua amplidão e desvela a sua razão de ser, sua mensagem essencial (não falarei de mensagem em literatura, mas de processo de significação.*). André Darbezies mostra que a história de Faust está estruturada por uma experiência cristã e ocidental do homem, de sua liberdade e de sua responsabilidade pessoal. O homem do Ocidente não se identifica com Faust, nem ao “homem faustiano” como o pretendia Oswald Spengler. Mas Faust fica numa de suas imagens privilegiadas, talvez a única realmente viva entre as antigas figuras míticas.
Qual é a leitura que foi praticada para chegar a esta conclusão?
Escutemos Darbezies mesmo: “o estudo de um mito ou de um tema literário não se reduz a um catalogo heteróclito de ditados ou de citações tiradas violentamente de seu contexto. Entre todas as variações da narrativa de Faust, foi necessário buscar uma lógica constante. Da história, foi se destacando uma certa individualidade e de uma relativa elasticidade : ela reage diversamente aos eventos, às idéias, aos slogans; ela tem suas repulsas e seus tropismos; ela se impõe, em uma larga medida ao escritor, mesmo genial (sobretudo genial) que gostaria de brincar com ela segundo a sua fantasia”.
É portanto sobre a permanência do mito, sua convertibilidade, sua contextualização relativemente ampla (mas não ilimitada, mas obedecendo sem dúvida a alguns princípios não da obra literária) que se deve refletir. Porque Faust nunca foi ligado ao materialismo grosseiro nem ao uniforme coletivista? Suas origens parecem bem ser de uma concepção espiritual e pessoal da vida. Tal é o que comprova a releitura da história mítica.
A originalidade do mito de Faust, segundo Darbezies, decorre da tensão dramática engendrada entre dois pólos opostos. O elã /o impulso) do homem e o peso do mal sobre ele. Um não pode existir sem o outro, tanto para Faust como para Don Juan : tal é talvez a razão do interesse constante do público. O mito de Faust é ao mesmo tempo afirmação do homem e advertência sobre os limites da condição humana. O mito, lido por André Darbezies, como “narrativa simbólica de uma situação existencial e exemplar”, é por conseguinte, indissociável daquilo que chamamos de “imaginário, o mito pode conhecer etapas, elipses, desaparecimentos e renascimento. Mas ele supõe uma continuidade feita de retomadas. Porque a história mítica tomou uma “ressonância coletiva”.
8.3 DA POÉTICA À HERMENEUTICA
O “esquema de evento” (noção tomada da antropologia estrutural de Lévi-Strauss) é como retomado, investido por cada geração. À perspectiva assaz poética de Jean Rousset, se acrescenta a perspectiva hermenêutica guiada pela vontade de compreender a amplidão histórica e cultural de uma história. A de Faust ,já faz quatro séculos, é a história de gerações sucessivas, tendendo a ceder a seu sonho de grandeza ou de sucesso. À cada geração nova, o mito relembra que cabe ao homem escolher a sua vida, ser criador ou gerador de si. Sem dúvida, a interpretação de uma história em que o pacto com o Diabo é o núcleo inicial e central, pode dificilmente esquecer perspectivas religiosas, morais ou filosóficas. É da tarefa do comparatista ( ou do estudioso em literatura em geral ) isolar o escopo consubstancial à história tornada mito. A natureza, a tonalidade da história contam bastante no objetivo interpretativo.
Com O Mito de Édipo (Colin, 1974), Colette Astier mostrou as possibilidades muito diversas, do ponto de vista da escrita (teatral, romanesca), de uma situação por definição intangível. Com o mito dos gêneros estudado por Jean Perrot (Mythe et littérature sous le signe des jumeaux, PUF, 1976), o par de gêmeos reenvia a relações binárias sobre as quais se organiza o pensamento primitivo. O mito da metamorfose (Colin, 1974) aparece a Pierre Brunel como o arquétipo dos mitos. Mas há exceções e sobretudo níveis poéticos. A metamorfose pode ser um “simples” tema literário quando ela se reduz a uma idéia, a uma proposta geral. Às vezes, são ainda afloramentos, como nos Cadernos de Laurids Brigge onde Rilke conserva apenas o momento da metamorfose na sua fonte. Há imagens, comparações, reminiscências, que são signos de um “empobrecimento” do mito, tornado “quadro vazio”, um instrumento ou uma “pura decoração”. Também, depois de distinguir a metamorfose vertical (que reúne os seres) e a horizontal (que os faz passar de uma figura para uma outra, de acordo com o modelo de Proteu), e depois de refletir sobre a noção de fantástico (que supõe quase sempre a metamorfose), Pierre Brunel chegou a colocar a questão essencial para onde se dirige a metamorfose como história mítica: não se trata de juntar seres ou de mudá-los, mas de descobrir os “seres que são postos juntos entre os vivos”, “o animal que nos tornamos” ou que “cada um carrega dentro de si”. A metamorfose se torna então a escritura de uma descida a si mesmo e atravessa o limite entre a matéria e o espírito.
Um mito, a metamorfose? Sim, mas também uma metáfora, e também uma alegoria. Metáfora porque finge descrever o outro para descrever o mesmo ou sugere um evento que não aconteceu (o homem de Apuleo que se tornou jumenta fica ainda um homem). Digamos alegoria em suas utilizações modernas (por exemplo, o Rinoceronte de Ionesco), e mais profundamente no sentido da alegoria da escrita, da literatura, como nas aventuras do Nariz de Gogol: de um lado, o Nariz mostrou que se pode suscitar a impressão que existe um processo de sentido alegórico que é de fato ausente; de outro lado, ele conta as metamorfoses de um nariz que narra as aventuras da própria alegoria.
8.4 MITOLOGIAS E MITO PESSOAL
Na perspectiva da interpretação do mito , ou seja, do ensaio para passar do esquema, do modelo de múltiplas variantes, a uma síntese, podemos finalmente anexar a noção de “mito pessoal”.
8.4.1 UM MÉTODO: A PSICOCRÍTICA
Não se trata aqui de um jogo de linguagem fácil, de uma dessas significações vagas que a palavra mito autorizaria. A noção recebeu precisão técnica da parte de Charles Mauron (Des Métaphores obsédantes au mythe personnel, Corti, 1963) e procedeu de uma tentativa de aplicação de uma certa psicanálise à Literatura. O mito que descobre Charles Mauron resulta de superposições de textos, de um mesmo autor (um ponto de método importante). Essas superposições fazem ressaltar redes de associações de imagens obsessivas. A repetição, involuntária, conduz à imagem de um mito pessoal, interpretado como sendo a expressão da pessoalidade inconsciente do escritor: os resultados da leitura, como sempre em psicanálise, são afrontados aos dados biográficos.
Os princípios de leitura – a superposição dos textos em particular – são próximas dos que foram preconizados para o exame da estrutura, co-esquema do mito. O mito pessoal supõe, ele também, um cenário mínimo. Se a noção aparece aqui tomar indevidamente o lugar que ocupa, temos de admitir que existe entre mitos antigos e personalidades de escritores, correspondências singulares. Como o nota Pierre Brunel no final de sua Mythocritique: “ A cada escritor, seu mito: Valéry e Narciso, Rilke e Orfeu, Camus e Sísifo. Gide, que flertou com muitos mitos gregos antes de se confundir-se/ coincidir com Teseu na sua última narrativa,sugeriu o nome de Prometeu como “padroeiro ” dos escritores.
A observação é um convite a praticar uma Literatura Geral e Comparada, que deveria se contentar em articular, em uma relação explicativa, esclarecedora, mito e escritura, esquema mítico e imaginação criadora.
8.4.2 UM ROSTO DO MITO D’ORFEU
A obra, desconcertante ao primeiro contato, do romancista argentino Ernesto, Sabato, pode ser relida ao confrontá-la ao mito de Orfeu (D. H. Pageaux, E. Sabato ou la littérature comme absolu, ed. Caribéennes, 1991).
De onde provém aquilo que de saída era uma hipotética aproximação? De passagens fortes, essenciais e no entanto fugidios da poética de Ernesto Sabato, quando ele fala de uma descida aos infernos, e de uma ascensão; quando ele quer dar conta do trabalho de romancista, de citações de Um homem no subterrâneo de Dostoievski, que ele admira profundamente. O mundo subterrâneo, infernal, compõe uma série de ocorrências e de seqüências que se podem chamar de metáfora obsessiva (ver por exemplo a cena inaugural de Sobre Heroes y Tumbas, trad. Alejandra, Seuil.).
Essas primeiras leituras devem ser confrontadas com a história de Orfeu, com vista de uma superposição de dois esquemas: o esquema estável, conhecido do mito (cf. Eva Kushner, Le mythe d’Orphée dans la littérature française contemporaine, Nizet, 1961), e o esquema que se delineia na obra e nos ensaios de Sabato. A história mítica d’Orfeu se compõe ,de fato, de três histórias e seqüências ou sucessões de seqüências fundadoras:
- a descida aos infernos ( a história de Eurídice, da qual Vergílio deu uma versão no canto IV das Geórgicas)
- Orfeu poeta e sacerdotes.
- A devoção em pedaços pelas Bacantes.
Esses três componentes se encontram na reescritura da vida, a espécie de
confissão que é Abadon (em francês, L’Ange exterminateur, Seuil), ou em seu universo
romanesco (o pintor Juan Pablo Castel em El Túnel / Le Tunnel, Le Seuil).
O homem dilacerado é uma das grandes obsessões da romancista, do ensaísta. A obra está ela também submetida à fragmentação, ao desaparecimento. No entanto, paralelamente a tais obsessões da obra se afirmam a vontade da unidade, o papel do escritor de ser fundador de palavras, o Logos Träger, o poeta-testemunha, tal como Orfeu, que traz a civilização aos humanos. Essa missão do poeta coincide com a teoria da arte como “revelação” em Ernesto Sabato; influenciada talvez pelos românticos alemães. A noção de “redenção” pode ter ressonâncias cristãs e filosóficas. Mas ela reenvia também à idéia de “redenção” pelo canto?, indissociável da figura de Orfeu critianizado. Influi, a idéia de uma arte “fundadora”, de uma escrita romanesca que seja uma “Ontofania”, ou um princípio estético, tal como Rilke em “O Canto é Ser” (Sonetos de Orfeu, I, III). A obra de Sabato, que se refere de modo obsessivo ao tenebroso e aos infernos, encontrou o mito de Orfeu, e a história mítica é depositada, viva e latente, no texto. E se o romancista fala tantas vezes de “profundidade”, é sem dúvida no sentido de Jean-Pierre Richard em Poésie et Profondeur: “Trata-se de atravessar a profundidade e de voltar libertado, fraterno”. Princípio ético e estético a uma só vez; figurado de vez, primordialmente, pelo vates inspirado em o nome de Orfeu.
Os mitos antigos não são os únicos a ter o privilegio de se tornarem mitos pessoais. Um espaço privilegiado, pela biografia e escritura, pode se transformar em mito pessoal. Assim o espaço do Caribe, a Mediterrânea das Antilhas para o Cubano Alejo Carpentier. Ou Veneza para Paul Morand em um livro que tem quase valor de testamento: Venises. Em ambos os casos, um espaço se torna matéria de escrita e principio explicativo da vida e/ou obra do escritor.
8.4.5 A LITERATURA COMO MITOLOGIA
Em The Educated Imagination (1984), Northrop Frye colocava, em uma vigorosa síntese, que a literatura fazia o mesmo trabalho que outrora cumpriria o mito, pois literatura e mitologia pertencem ao mundo que o homem constrói e não ao mundo que ele vê. O mito, mesmo quando é fala poética, está do lado do Logos, pois remete à ordem da cultura e não da natureza. Neste sentido, estudar os mitos, é para o comparatista, começar a se aproximar da questão poética por excelência: O que é escrever?
O processo de mitização parece se confundir com o processo de civilização, entendido como apropriação progressiva pelo homem de tudo que não pertence à ordem do Logos, graças às suas capacidades criadoras individuais. Os mitos participam, portanto, desta empresa infinita, individual-coletiva que Hölderlin definiu nesses termos: “É poeticamente que o homem mora nesta terra”.

Recife, João Pessoa, Janeiro de 2007.
Digitação generosa da Mestranda Flávia Andrade do Amaral

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