Sébastien Joachim

Este blog é um meio de comunicação entre o professor e seus alunos.

domingo, 28 de março de 2010

MITOS E IMAGINÁRIO


Daniel-Henri Pageaux (Université de Paris IV)
Sébastien Joachim (tradução e notas), UEPB-UFPE



MITOS
Diferentemente dos temas e das imagens, os mitos são uma conquista relativamente recente do comparatista. Há meio século, a respeito de Don Juan, fala-se mais de “lenda” do que de “mitos”: nisto, a literatura comparada seguia a via traçada pelos folcloristas dedicados ao estudo de contos, lendas e mitos. A pequena História das lendas publicada na coleção “Que-sais-je” (nº 670), põe todavia em destaque Faust e Don Juan como dois pilares da “mitologia comparatista”. A anexão recente explica talvez o que Pierre Brunel chama, no prefácio a seu Dicionário de Mitos (ed. Du Rocher 1988), de imprecisão terminológica que não será jamais totalmente corrigida .
É significativo o fato de que dois co-autores de manual de Literatura Comparada, Pichois et Rousseau, tenham inscrito, sob a rubrica “tematologia”, um certo “imaginário”(maravilhoso folclórico, fantástico livresco e mitos) que opõe-se a um segundo conjunto, chamado “Real”. Este teria como componentes: “tipos psicológicos e sociais”, “personagens literários”, “coisas e situações”. Seja qual for, “o comparatista está aí em país conhecido”. Não ironize apressadamente acerca desse “país conhecido”, cujas fronteiras parecem bastante incertas. Assinalamos porém que se tem falado em “temas míticos”: o autor desta indevida aproximação é Raymond Trousson que, de fato, hesitou entre os dois termos ( temas, mitos) antes de distingui-los, de 1965 a 1981. Por sua parte, Yves Chevrel gosta de referir-se a Édipo, Don Juan, Prometeu e Werther, como “figuras míticas”. Com certeza, o mito interfere com o tema, o sujeito, o motivo, a imagem, o símbolo , o tipo.
É não menos certo também, como nota Pierre Brunel, que a literatura comparada deve rever sua terminologia vez em quando, “para refiná-la”; mas as questões de terminologia ocultam amiúde problemas de método. Temas, mitos e imagens, figuras, motivos, são partes de um tudo: o texto. Todo mito é, lato sensu, um “tema” do texto, mas todo tema não é mito, apesar do fato de que temas e mitos são estruturas do texto. Daí a questão dúplice: O que é mito literário? O que é o mito, na perspectiva da Literatura Comparada?

DO MITO AO MITO LITERÁRIO
O mito pertence aos folcloristas, aos antropólogos, aos historiadores das religiões e aos sociólogos. Estes lhe atribuíram em geral conotações pejorativas (os mitos publicitários ...).
Em Mitologias (Seuil, 1957), Roland Barthes apresentou uma coleção de ensaios sobre o imaginário da França nos anos 50 – 60. Há também o mito “primitivo” dos etnólogos ou dos antropólogos, ainda prometido à longa vida na Literatura, já que se falará de “situação fundamental” ou de “situação humana exemplar para uma coletividade” (cf.André Darbezies, na conclusão de Visages de Faust au XXe siècle, PUF, 1967).
É algo tentatório, até esclarecedor, falar em “situações fundamentais” a respeito de um pacto com o diabo (Faust), de um castigo (Don Juan), de um sacrifício ( Ifigênia), de um desrespeito da morte da parte de Don Juan ou de Antígona. O literário (o comparatista) estudará, portanto, esquemas essenciais, provavelmente porque são antes de tudo fabulas já estruturadas no momento em que aparecem as primeiras versões literárias, sendo estas textualizações de histórias colocações em palavras. Essas passagens à escritura variam de uma cultura à outra, de um século ao outro: vê-se logo a semelhança com o tema e a diferença que parece ser o caráter fixo, diria-se “esquemático” do material utilizado (Nota do tradutor)
Assim como o tema, assim como a imagem comparatista , o mito é um material a partir de que se elaboram os textos estudados: tema, imagem, mito, são, para o comparatista, a matéria (como se diria no Brasil, a matéria do Sertão em Guimarães Rosa, Euclides da Cunha, José Américo, etc.).
Mas não existe matéria sem forma (ou forma sem matéria): Essa osmose ao mesmo tempo evidente e tão delicada a estudar encontra talvez com o mito uma solução original e eficaz.


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DO MITO ETNO-RELIGIOSO OU MITO LITERÁRIO
A passagem dos mitos primitivos, matéria de religiões, crenças, para a Literatura tem sido considerada como um processo esclarecedor de passagem do sagrado ao profano.

1. DO SAGRADO AO PROFANO:
Sagrado, profano são os dois pólos do pensamento de Mircea Eliade (Aspects du mythe. Gallimard, 1963; Le Sacré et le profane, Gallimard, 1965). Podemos pensar também em Denis de Rougemont (L”Amour et l’Occident , 1939. col. 10/18) e em Claude Lévi-Strauss. No entanto, Lévi-Strauss considera o mito literarizado como “o ultimo murmúrio da estrutura expirando”... O comparatista Pierre Brunel sublinha o papel capital preenchido pela literatura e pelas artes ( em nossos dias pelo cinema): o de ser “um conservatório dos mitos” ( cf. para a televisão, o livro Mito e Comunicação, da autoria de Arthur da Távola,um Congressista brasileiro). Porém, se o mito “literário” subsiste é pela sua impregnação literária. Pois, o mito”literário” acrescenta ao mito primitivo significações novas. Como disse tão bem Pierre Albouy, não há mito literário sem uma “palingenesia” (renascimento, denegação) que o ressuscita numa época em que ele se revela apto a “expressar da melhor maneira os seus próprios problemas”. (cf. Mythes et Mythologies dans la Litterature française. A. Colin, 1969, reed. 1980).
Existe aí um convite a empreender um estudo comparativo e também comparatista: ressaltar as retomadas e as variações, e também permanências, presenças em certas épocas, assim com certas ausências em outras épocas, da parte de certos escritores; presenças ainda vivas de mitos antigos, mas igualmente eclipses e prodigiosas adaptações. Para a literatura, para o seu imaginário, o mito é bem uma historia dinâmica e exemplar, coletiva e também individual.

2. SOBRE ALGUMAS DIFERENÇAS ESSÊNCIAIS
Philippe Sellier colocou entre mito “etno-religioso” e mito literário algumas diferenças essenciais (Littérature, 1984).
2.1. O MITO “ETNO-RELIGIOSO” é uma narrativa fundadora, anônima, coletiva, tida por verdadeira e que, quando analisada, aparecer fortes oposições estruturais. Quando esse tipo de mito passa para a literatura, ele conserva a “saturação simbólica”, a organizações densa e a colocação metafísica, mas ele perde seu caráter fundador, verídico, e as obras são assinadas por um autor.
2.2. Existem outros mitos, narrativas exemplares também, nascidos da literatura: Tristã e Isolda, Faust ou Don Juan. E há em literatura “elementos míticos” tais como o filtro de Medeia, o pacto com o diabo (Faust) ou estátua de pedra (Don Juan).

2.3.MITOS DE CIDADES, TAIS COMO VENEZA
Outras manifestações literárias do mito podem ser apontadas, as imagens-forças dos sociólogos ( o Progresso, a Raça, a Máquina...) que se revelam, com efeito, “capazes de exercer um fascínio coletivo assaz comparável àquele dos mitos primitivos”.
De fato, se tal personagem histórico se torna “mítico”, se Napoleão aparece como um novo Áquiles, um outro Prometeu ou “o ógro da Córsega”, o que importa é essa possibilidade de efabulação na consciência comum. Mitos são bem “tudo que a literatura tem transformado em mitos” (P. Brunel). Ou mais precisamente talvez: tudo aquilo que uma cultura conseguiu transformar em mito.

2.4. A MITIZAÇÃO
O mito como acabamos de colocá-lo lembra primeiramente a idéia de tema, o qual é principio de organização,de estruturação de um texto; por isso a mitização vai designar um processo de constituição de um texto em material significativo de pesquisa criativa. Em outras palavras, a mitização é uma atividade interpretativa captadora do mito literário no perpétuo devir deste enquanto objeto de estudo. O mito literário, no seu sentido mais forte, é um “pré-texto”, um “ante-texto” (ele leva a criação de alteridades). No caso dos mitos antigos esse ante-texto fica na dependência da tradição oral (“um etno-texto”). Ele é uma história que “entra” na literatura. Orfeu e Napoleão foram antes “pré-textos” antes de se tornarem uma ópera de Monteverdi e um romance de Tolstoï




Como se vê, ópera e romance têm servido a acrescentar à mitização ou à tradição mítica.
O mito seria talvez um tema que percorreu uma trajetória, do mesmo modo que palavras, estereótipos, imagens (cf. cap. 4) se tornaram cenários. Se, tal como aparece, isso se comprova, essa transformação, ou mitificação/ mitização, seria provavelmente uma conseqüência da natureza do mito enquanto história capaz de ser retomada por várias gerações em razão de sua multisignificância. Ou não seria também devida, essa transformação, à função que ela mesma ocupa ( o mito sendo uma história que pode ter relações com uma alteridade por seu valor exemplar e explicativo, por exemplo no caso dos mitos antigos que compõem uma religião, i.e. etimologicamente algo que liga ) ? Pode-se supor também que a natureza do mito (literário ou não) foi de exercer essa função particular de relação. A questão fica aberta.

3. DE UMA MITOLOGIA À OUTRA
Tomaremos como ponto de partida de nossas colocações um pequeno artigo do helenista Jacques Bompaire. Neste artigo, ele examina o mito tal como aparece na Poética de Aristóteles à luz do estruturalismo definido por Jean Piaget. (cf. Formação e Sobrevivência dos Mitos, Colóquio de Nanterre [1974], Paris, Les Belles Lettres. 1977).

3.1. O MITO COMO ESTRUTURA
Da “estrutura”, o mito conserva as três características escolhidas por Jean Piaget: a totalidade, a transformação, a auto-regulagem. O mito, segundo Aristóteles, é bem “synthesis”, isto é, organização concebida como totalidade, totalidade orgânica. Ele sofre, porém, transformações, seu conteúdo pode ser modificado, e pode-se dizer que este conteúdo é essencialmente movimento. Mas o mito regula a si mesmo, de modo a assegurar sua própria conservação. Os elementos indispensáveis a sua estrutura têm de subsistir: senão, a estrutura desaparece e cede o lugar a uma outra. O mito é um sistema, um conjunto coerente, dinâmico, que evolui em função de exigências, de parâmetros internos próprios.
Reencontraremos assim a Literatura, ou de preferência o poeta, perante um dilema indicado por Aristóteles (Poética, XIV): o poeta não pode modificar os mitos recebidos como herança cultural, e no entanto ele deve se mostrar inventivo. É o principio fundamentalmente dinâmico (talvez dialético) da mimesis, um principio que não se confunde com a imitação. Assim, descobrimos que o mito oferece a sua maneira uma sorte de imaginário sob controle Podemos então nos lembrar do texto mais ou menos “programado”, um “pré-texto”... O mito é para a literatura, uma historia programada, um pré-texto. André Siganos fala de “sintagma minimal do mito”, sem o qual não disporiamos de apoio estrutural suficiente para construir o mito nem meio para reconhecê-lo como tal numa historia retomada pela literatura (cf. O Minotauro e Seu Mito, PUF., 1993). Existe decerto uma lógica de mito que é, por sua vez, uma coerção para novas formulações: estas podem ir até contradizer o “texto” inicial: um Don Juan salvo e não castigado, uma Ifigênia salva e não sacrificada. Mas o esquema invertido – ou parodiado – supõe a existência e o reconhecimento do esquema que serviu de modelo.

3.2. O MITO COMO HISTÓRIA
A partir de quando poder-se-á falar em mito de Napoleão? Quando uma história “segunda” duplicará a “verdadeira” história, numa narrativa estruturada: a “lenda” do Imperador Napoleão, os Anais fabulosos do Império. Essa narrativa “segunda” se alimenta como o mostrou Jean Tulard (Le Mythe de Napoleão, Colin, 1971), de mitos pré-existentes, necessários à mitização: e.g. paralelos possíveis entre o “destino” de Napoleão e a figura de Cristo, cruzamento com o mito de Prometeu, “parasitagem” (ou exploração) do estereótipo do Ogro. O estereótipo muda-se em figura mítica, quando ele se torna narrativa, história, portanto tematização, que aqui se chama Mitização. Tal é o trabalho de escritura de um Chateaubriand no seu panfleto De Buonaparte et des Bourbons (1814), uma história “negativa” naquilo que narra, mas “positiva” do ponto de vista da função que ela ocupa no imaginário da época. (No Brasil, cabe nesse tipo de estudo: a figura de Getulio Vargas nos romances de Érico Veríssimo, Rubem Fonseca, etc.; a figura da mulata, do Realismo até a era recente, ou na Canção popular; no Romance hispano-americano, a representação do povo; a do estudante em G. G. Márquez e Alejo Carpentier; a figura do ditador Rosa em Eu o Supremo de A. Roa Bastos : Nota do Tradutor).
A história mítica, a qual tem a característica de poder ser negativa ou positiva, teve, dentro de certos limites, para certas gerações, um papel, uma função comparável àqueles que os antigos mitos tiveram provavelmente na cidade antiga e ao olhar dos poetas. No caso de Napoleão, a mitização tem seus marcos e seus nomes: Byron, Beethoven, Goya, Karl Marx, Tolstoi, aos quais se adicionam os de Chateaubriand, de Vigny, Hugo, Aragon e o cineasta Abel Gance.
Se tratando de mitologia quer “antiga” quer “moderna”, o mito é uma história viva para os que a recriam, a escutam ou a lêem. Uma história mítica não utilizada pode continuar a ser nomeada “mito” numa perspectiva largamente diacrônica; mas ela para de ser mito a partir do momento que não mais constitui um componente da cultura, da literatura estudada. Ela volta a se tornar mito quando a referência se encontra reativada, quando ela trás uma nova historia que nutre o imaginário (ex.: a saga do quilombo no Brasil negro de hoje).
À cada época, seus mitos privilegiados, sua mitologia. Neste sentido, tanto os mitos como os temas podem servir para enriquecer e nuançar a historia das literaturas.
Pode-se falar de mitos de época, como já tem-se falado de temática de época. C. M. Bowra, com The Romantic Imagination (Oxford Univ. Press, 1969, retomada de conferências de 1948-1949), fornece uma contribuição já antiga, quase clássica, para o estudo da “imaginação romântica”. Encontramos aí lado à lado obras e “faróis”, estudos temáticos e perspectivas míticas (Don Juan, Prometeu). Em Fin de siècle. Gestalten und Mythen (Munich, W. Fink, 1977) Hans Hinterlauser reuniu alguns dos componentes de uma mitologia finissecular ou decadente: a volta de Cristo, as cidades mortas, a rebelião dos dandys, as mulheres pré-rafaelitas, os centauros... O Cristo fim-de-século, como seu predecessor (cf. Frank Bowman, Le Christ romantique, Genève, Droz, 1973) são temas que se configuram com cenário codificado (“o que aconteceria se ele voltar e refizer as mesmas coisas?”) e com valor exemplar para uma ou várias gerações.
É preciso portanto estudar como o tema ou o tipo, a imagem, o feixe de imagens, ou por vezes a palavra podem se transformar em história, se tornar estrutura - conjunto de elementos constituintes e de variantes-, compreender o papel exemplar que essa história tem podido haver para suscitar repetições, retomadas. Tal “história”, tal “figura” se torna exemplar no seio de uma certa cultura, e todavia não passa de uma presença limitada e de segundo plano em outra cultura. Maria Soledad Carasco Urgoiti, num estudo remoto, justamente reeditado (El Moro de la Granada em la Literatura, Revista do Ocidente, 1956, re-edição. Archivum, 1989.) estuda principalmente um caso de “maurofilia literaria” (“mauromania” seria melhor), a mitização do último “abenceragem” (tipo de ameríndio). Essa figura conheceu seus dias de gloria e de eclipse na Itália, na França no século XVII, e ainda inspirou Chateaubriand no século XIX assim como, mais recentemente, o romancista americano Washington Irving. Mas ela fica ligada à viagem, a Granada e ao “mito” do Alhambra.
Não há, com certeza, permanência ou universalidade do mito: os mitos gregos só demonstram o que se dá como universalidade em virtude da hegemonia cultural da Europa, herdeira inspirada nessas histórias. Em contrapartida, existe uma vida, uma sobrevivência, ressurreições de mitos antigos, surgimento de novos mitos uma convertibilidade de antigas histórias em versões modernas, coalescência sempre possível de certos elementos ou figuras míticas em histórias que a literatura, entre outras artes e outros discursos, contribui a tornar exemplares.

4. PARA UMA DEFINIÇÃO DO MITO LITERÁRIO
Pierre Brunel, em suas pesquisas sobre o mito retomadas no Dicionário de mitos literários (já citado) distingue três elementos de definição possíveis do mito, que ele denomina aliás funções.

4.1. O MITO-NARRATIVA
O mito narra uma estória/história, ele é uma narrativa. Assim opõe-se, em Platão, ao diálogo, à discussão. A idéia do mito como narração, como cenário ( o que nos leva de volta a Levi-Strauss, ou à imagem quando ele entra na literatura) reenvia às perspectivas estruturais de um Tomachevski. Este teórico formalista define o mito como “sistema de motivos”. A história peculiar que é o mito produz reiterações, retomadas de elementos( o que Levi-Strauss chama de “mitemas”. Pierre Brunel relembra oportunamente a definição do mito segundo Micea Eliade:
“ o mito narra uma história sagrada; ele relata um evento um evento que teve
lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos”.
Ou a de Gilbert Durand:
“um sistema dinâmico de símbolos de arquétipos e de schèmes
( organizações dinâmicas) que, sob o impulso de um esquema
(principio diretor), tende a se configurar em narrativa”.
Um esquema se tornando narrativa, tal poderia ser o primeiro elemento de uma definição simples e esclarecedora: ela ressalta a idéia de um “cenário mítico” ( sucessão de sequências ou mitemas.- Nota do Tradutor).
O cenário mítico do “mito” de Antígona é o seguinte:
• A oposição da heroína ao tirano;
• A interdição de sepultar um de seus irmãos;
• A violação desse interdito;
• O noivado com o filho do tirano;
• A condenação e a morte.
(cf. Simone Fraisse, Le mythe d’Antigone, Colin, 1974. George Steiner, Les Antigones, Gallimard, 1986).
Entre estes dados estáveis há lugar para “variantes”, signo mesmo da “liberdade , da vida, da literatura”, nota Pierre Brunel.
Acrescentamos: “signo também de uma coerção , mais ou menos forte, do imaginário quando este se volta para esse cenário.”
Esse constrangimento ou coerção é, em certos casos , muito real e pode ter, no plano estético, grandes consequências. Foi considerada legitimamente, a respeito da extraordinária fortuna crítica do Paradise Lost de Milton, que ela teve também como conseqüência de paralisar a imaginação dos que tentaram transcrever novamente a Gênese,na medida em que o poeta inglês ofereceu um cenário dramático, pinturas pitorescas, mas também, em contrapartida, estabelece uma verdadeira convenção com a qual era difícil rivalizar, isto é, inventar. Entre a Bíblia e Milton, a margem de manobra aparece muito estreita (cf. J. Blondel, ed. Le Paradis Perdu, 1966-1967, Minard, Lettres Modernes, 1967. Jean Gillet, Le Paradis Perdu dans la Littérature Française. De Voltaire à Chateaubriand, Klincksieck, 1975).

4.2. O MITO-EXPLICAÇÃO
O mito é uma narrativa-etiológica, fábula explicativa no mito da metamorfose de Dafné, na qual o nome reenvia à coisa. (cf. Yves Giraud, La Fable de Daphné, Essai sur um Type de Métamorphose végétable dans la Littérature et lês Arts. Geneve, Droz, 1969). O mito narra de que maneira a realidade é o que ela é, como se desenvolveu o mundo e quais tipos de relações os homens mantém com ele.
De modo mais preciso: o mito é explicativo no sentido de que ele é antes um saber que se pode inferir da história. Esse saber mostrará de que maneira o mito é organização de mundo: todo mito é história das origens, todo mito é fundador, é cosmogônico. No plano cultural, ele faz autoridade, isto é, ela é uma referencia mais ou menos permanente e que apela para repetição, pela ritualização.

4.3. O MITO-REVELAÇÃO
Se o mito tem como função a revelação , podemos dizer, por conseguinte, com Mrcea Eliade, que toda mitologia é uma “ontofania”, uma aparição ou epifania do ser. Se o mito indica o sagrado, o mito literário vai ser também uma “resposta” . Ao seguir André Jolles (Formas Simples, Seuil, 1981), Pierre Brunel soube discernir, entre a questão que o homem levanta e a resposta que é dada , o espaço possível de uma “forma” chamada “mito” .
Este algo , o chamado de “resposta” tem de fato uma dupla função: ética e compensação. O mito funciona como a grande história, daí decorre seu valor de história exemplar e de alcance ético. Da mesma forma como os mitos antigos deram coesão à coletividade que os aceitava enquanto base religiosa, ou enquanto linguagem simbólica, do mesmo modo está agindo o mito “moderno”. Joana d’Arc, Napoleão, Che Guevara, etc, têm um valor ético para a comunidade que se reconhece nessas histórias que eles protagonizam ( Le Penn usa estrategicamente Joana d’Arc como mito político...). Há portanto adesão coletiva a uma história que, de singular que ela foi (Zumbi, Gandhi, Padre Cícero,...) se torna coletiva. O mito não é uma resposta .no sentido habitual., mas no sentido da problematologia de Michel Meyer, onde resposta designa mais um ponto de passagem em direção de uma interrogação nova do que uma parada numa solução apaziguadora ou letárgica .
Em que sentido, em função de que “resposta”, o mito tem uma função de compensação? Diz o professor Pierre Barbéris a respeito do mito de Napoleão que ele é uma história segunda. Mais pertinentemente,o mito está em função de “resposta”, ao revestir o aspecto singular de símbolo de conseqüências múltiplas. Assim, o escritor que recorre ao mito questiona uma resposta, e a escrita se efetua justamente através desta interrogação a qual submete uma resposta, um cenário pré-existente. É absolutamente imperativo analisar , isto é, separar os elementos, identificar e delimitar as seqüências em que o mito se configura, toma figura, consistência A contribuição do escritor, da época, da cultura em questão tem que ser passada ao crivo.
O mito literário só pode ser estudado numa encruzilhada, habitualmente a de dois processos complementares: a conservação de um cenário e sua transformação pela qual podemos ler o trabalho e as escolhas do escritor. Se Claude Lévi-Strauss tem razão em afirmar que o mito é o conjunto de suas variantes, poderemos então propor que, em Literatura geral e comparada, o mito é também o conjunto das tranformações sofridas por um cenário, na ordem ideológica, estética, ou na dependência de um imaginário diferente do mito em suas versões anteriores acessíveis ao escritor. Cabe explicar também por que existe retomada, reativação de cenário, da parte de um autor ou de uma geração. Vem agora à tona a importância da proposição, aparentemente provocante, de Jean-Louis Backès (Le Mythe d’Hélène, Adosa, 1984):
“O mito não é matéria à interpretação, mas objeto de reconhecimento”.
De fato, a reminiscência (a relembrança involuntária) apela para a re-avaliação; sem interpretação (no sentido de reviver o processo da significação não no de atribuir um significado: Observação do Tradutor)), o risco é de cair na codificação, no clichê, no estereótipo, com reemprego apressado. O mito terá dimensão literária só se for fala viva.

5. PRINCÍPIOS DE UMA MITOCRÍTICA
Com cautela e reticências, Pierre Brunel aceita falar de uma mitocrítica em Literatura Geral e Comparada. (Mythocritique: Théorie et Parcours. PUF, 1992). E as três leis do comparatismo enunciados por ele oferecem úteis caminhos de reflexão. São as leis de emergência, de flexibilidade e de irradiação.

5.1. LEI DE EMERGÊNCIA
Trata-se de examinar as ocorrências míticas num texto, sem se limitar às ocorrências explicitas. A novela Colomba de Merimée torna-se rápido uma variante do mito de Electra. O trabalho de comparatismo se funda na identificação e em seguida na interpretação, e esta se apóia na história literária ( ou pesquisas de filiação histórica). Não esqueça que o mito deve “produzir” uma história ( o autor apresenta um caso, onde a referência é mitológica sem ser mítica)... A referência não pode ser uma metáfora obsessiva nem um “mito pessoal” à Mauron (Psychocritique). Há provavelmente no texto marcas ou vestígios de um mito, alguns indícios, mas a antiga fábula, ou seja o dado mitológico em filigrano do texto, não provoca automaticamente uma nova fabulação, ou uma amplificação ou extensão. Há emergência sem irradiações.

5.2.FLEXIBILIDADE
A noção de flexibilidade remete aqui ao grau de adaptabilidade e de resistência de elemento mítico ao texto que lança mão de um mito. A fase essencial do reconhecimento e também a da avaliação da resistência do “schème” que dinamiza todo mito requerem cuidado. Cabe ao leitor-pesquisador por em confronto o texto ao “schème” diretor do mito fundador, previamente estabelecido.
Esse esquema tem de ser descoberto por um trabalho de leitura inventivo das histórias, uma leitura apta a captar seus elementos recorrentes, as seqüências essenciais e constitutivas do mito, ou seja, como diz A. Siganos, o “sintagma minimal”. No caso do mito do Minotauro, três seqüências são postas à mostra por Siganos:
• A transgressão da ordem natural pelo nascimento do monstro;
• A ordem estabelecida: o minotauro age, ele é sujeito;
• O questionamento heróico: o minotauro “sofre”.
O confronto desse esquema com textos faz ressaltar suas possibilidades de “modulação” (Siganos). Há no texto estudado “uma presença outra”, diz Pierre Brunel.
5.3. IRRADIAÇÃO
Essa “presença outra” de Brunel deve ser obrigatoriamente repleita de significação. É a partir dela que se organizará a análise toda do texto. Mesmo o elemento mítico, se ele é tênue, latente, tem de ter seu poder de irradiação. Poder-se-ia partir do título, “signo debaixo do qual o livro ou o texto se processou”; pode-se partir também de uma epígrafe suscetível de “ pôr na trilha certa”. Por exemplo, o grito com o qual começa a segunda parte d’Aurélia de Gérard de Nerval: Eurídice! Eurídice! aparece como “uma referência dúplice ao mito e à ópera” (Brunel): a leitura é confirmada pela primeira frase (“Uma segunda vez perdida”) e pelo fim do texto.
A irradiação deve ser confrontada com a forma literária : o esquema do mito entra em competição, por exemplo, com o gênero literário (teatralização do mito, lógica mitológica e lógica romanesca...). Além do mais, o mito pode ser considerado como um “hipotexto” (Genette), isto é, um outro texto mais ou menos ocultado debaixo do texto que lemos. Isso pode haver uma conseqüência poética de longo alcance. O texto estudado pode virar um “hipertexto” em relação ao esquema mítico-hipotextual. O que incita a encarar as relações entre esquema mítico e texto como relações intertextuais.
Pierre Brunel chegou a propor duas fontes de irradiação “sob-textual”: uma é a obra de um escritor dado, na qual o mito se delineia e que irradia um outro texto, este texto em leitura, embora de forma não explícita; a outra se apresenta quando o mito mesmo, isto é, sua “inevitável irradiação” na “memória e na imaginação de um escritor é tão explícita que não requer de ser tornado explicita”. Mas como o mito é antes de tudo estrutura, terá que ser descrita a organização do texto, se quisermos produzir uma verdadeira leitura ; é indispensável proceder à “descrição da organização do texto””. E neste caso, diz Brunel, “cada qual faz análise estrutural sem o saber”.

6. NASCIMENTO E DESENVOLVIMENTO DO MITO LITERÁRIO
Falamos de nascimento e não de origem. É admitido que o mito (etno-religioso) já desapareceu ao passar do tempo. Em tal situação o que resta a fazer ao comparatista?

6.1. MITO E HISTÓRIA CULTURAL
O comparatista intervém à primeira grande transformação dos mitos antigos: a doutrina do Evemerismo (Évhémère acreditava que sob a figura dos deuses se encontravam mortais memoráveis). Essa doutrina foi retomada e cristalizada por Lactance em suas Institutions Divines; a doutrina fará uma longa carreira durante toda a Idade Média e ainda na Espanha no século de ouro tão repleta de fábulas e mitos “pagãos”. Tal é, por ex., a tese da Philosophia secreta de Juan Perez de Moya (5 edições entre 1585 e 1673) a do Teatro de los Dioses de la Gentilidad (1620) de Fray Balthasar de Vitória. O sistema de pensamento do siglo d’ouro explicita também a exploração poética das metamorfoses de Ovídio como modelos poéticos, as interpretações católicas do deus Pan (pan=pão), a fábula d’Eco e Narciso, lida por Sor Juana Inês de la Cruz em El Divino Narciso como figuração da igreja (Eco) amorosa do Cristo, ou a alegoria possível das parcas tecelãs por Velazquez.

6.2. HISTORIA MÍTICA E GÊNESE
Se abordarmos o terreno de uma certa história literária, é possível desenvolver diversos estudos diacrônicos que demonstram como se passa de um personagem ou de um tipo literário a um mito.
O exemplo do mito de Helena.
Estudado por Jean-Louis Backès, esse mito permite entender o nascimento e desenvolvimento sempre aleatório de uma história mítica. Uma constatação que beira o paradoxo: o mito de Helena “não teve muita chance”. Ele fica bem atrás d’Édipo, Faust, Tristan, ou Don Juan. Helena parece fadada ao episódico. “o único elemento constante seria o seu nome próprio: é pouco.” No entanto, o personagem não falta complexidade humana e ao mesmo tempo divina. A história de Helena poderia então aparecer como a da “possível presença do sagrado no interior mesmo de uma figura lendária”. Daí a pergunta: “o que pode se tornar um mito, um verdadeiro mito outrora vivo, quando se encontra prisioneiro nesta imensa maquina interpretativa: A literatura? “O que pode significar neste caso a sobrevivência de um mito? História “pobre” em aparência, ela resiste aos séculos, e Helena vivera, como diz Ronsard, “ao menos tão longo que viverão as penas e os livros”. O que volta a atribuir à literatura a função de repertório, de conservatório.

6.3. MITO E NASCIMENTO DE UM CENÁRIO
Talvez se possa ler em tal mito “pobre”, ou em outros que buscam impor-se, uma das trajetórias que oferecem ao imaginário “esses agrupados mitoïdes” (de que se falou antes) em expectativa de uma historia. O autor deu dois exemplos).
1. O mito do poeta infeliz
2. O nascimento literário de Don Juan (como passou da história onde era virtual,  para a literatura)
3. Mito e História.
Como um só texto, La Tragédie du roi Christophe d’Aimé Césaire, podemos ainda compreender, por um golpe de força poética e política, como o pai da negritude funda um mito e, fazendo isso, escreve a História exemplar do rei tirano Henri Christophe. A peça, que se conclui sobre a imagem do túmulo, inversa e procedimento trágico à francesa; é um drama da história, inspirado nos modelos Shakespeariano e Claudeliano, o qual é transformado no final, em história, mito, reescritura e resgate da História Colonial, uma duplicação da História de três séculos de escravidão e de vergonhosa deshumanização por uma história segunda. A imagem da Fênix é a última textualização, “mise em abyme” exemplar, para toda a raça negra: não há mito sem destinatário, garantia da sua exemplaridade.

7. POÉTICA DO MITO
7.1. GENERALIDADES
Para começar, é mister relembrar duas grandes características formais ou estruturais do mito:
- ele é uma narrativa
- ele é um esquema ( dinamicam,ente chamado de schème) ,e/ou um cenário
No seu livro Le Récit Poétique ( Gallimard, 1994), Jean-Yves Tadié estuda “a relação entre duas formas literárias”, “as variações entre dois sistemas”. As três possibilidades que ele distingue se aparentam às três “leis” de Pierre Brunel: ou a narrativa poética é “totalmente mítica” (irradiação), ou “ela integra mitos” sob forma de “narrativas encaixadas” (flexibilidade), ou ainda “a presença dos mitos é subterrânea” e se lê “através de certos episódios da história ou certos heróis” , ou também essa presença estoura em uma chuva de faíscas simbólicas” (emergência).
De fato, trata-se principalmente de mostrar que a narrativa poética, quando não utiliza, pelo processo de intertextualidade, mitos antigos (como fazia Jean Giono no começo de sua carreira de romancista), cria mitos novos (é o caso de Louis Aragon). A narrativa poética é “uma máquina de re-produção de sentidos ocultos”, melhor dizer: uma máquina de produzir sentidos. Ela se opõe, desta maneira à “narrativa realista”; mas a narrativa realista, quando é literatura verdadeira é mítica, demonstrou Henri Mitterand a respeito de Zola. É sintomático que a analise da narrativa poética, como de toda boa narrativa, evolui para a analise de símbolos e de sonhos. É preciso voltar à idéia de esquema (schème). Por ela, é mais fácil entender duas coisas: o estatuto da história mítica num texto, a solidariedade do texto estudado em sua estrutura com o esquema mesmo.
O nascimento do mito se confunde por conseguinte com a constituição de um “esquema” diretor, de um cenário para uma nova história. O trabalho de leitura crítica, o trabalho do poeticista, vai consistir prioritariamente em identificar o esquema mítico (as invariantes, os elementos constituintes), e depois em mostrar o seu funcionamento e as variantes.

7.2. LEITURA DO MITO
Várias veredas de leitura se oferecem ao comparatista: o trabalho sobre as estruturas do texto ( o esquema mítico), os problemas de intertextualidade (passagem de uma versão à outra, e presença de uma versão mítica por detrás de um texto), enfim, o trabalho sobre as questões de formas e de generos literários confrontados ao esquema mítico – “as metamorfoses laterais”, diz Jean Rousset em seu livro O Mito de Don Juan ( Paris: Colin, 1976). Este livro pode servir de guia para um novo tipo de leitura e um novo método de comparação dos textos....
7.2.1. MÉTODO ESTRUTURAL E SUPERPOSIÇÃO DE TEXTOS
Jean Rousset elabora um “cenário donjuanesco permanente” cujas unidades constitutivas, as invariantes, são três:
- o morto (sem o qual, narraria uma outra historia);
- o grupo feminino (“uma série de vítimas e uma vítima privilegiada”);
- o herói mesmo, aquele que “agride o morto” e que recebe o “castigo final”.
Talvez fosse proposital falar a respeito desta última variante, de castigo e não de herói.
Mais precisão sobre esta “invariante”: ela é o componente de um modelo; ela não tem portanto nenhuma ligação com as invariantes já encontradas até agora. As invariantes constituem uma abstração: “um dispositivo triangular minimal” que determina “ uma tríplice relação de reciprocidade” (Penso no mito de Édipo – nota do tradutor).
Jean Rousset propõe um “método estrutural”, mas não quer ser prisioneiro desse método; ele quer ler textos, dedicar seus esforços a micro-análises e a “superposições” de elementos, de seqüências, de unidades diversas; quer agregar essas unidades em feixes coesos ao longo do seu corpus, tratando as versões diacrônicas do mito como se fossem sincrônicas , isto é, sintagmas justapostos, a fim de chegar a inferir as principais combinações, isto é, a comparar.
Merece uma especial atenção o termo: superposição (de origem Lévi-straussiana e mauroniana). Se, de um lado, a constituição de um corpus é fruto de leituras, intuições, conhecimento, se ela funciona por contigüidade (efeito de vizinhança), por associações temáticas ou por associações de idéias, facilitadas aqui pelo nome do protagonista, logo por títulos identificáveis, de outro lado a elaboração do esquema, as comparações de texto a texto operam por superposição. Não se trata mais de vaivém ou de leituras laterais, de leituras em espelho ... A existência de um esquema, de um método de inspiração estrutural, aquela que preconizou Claude Lévi-Strauss (mas que Gilbert Durand criticou por sua rigidez: ela tende a bloquear o livre processo da imaginação).
7.2.3 INVARIANTES E VARIANTES
O modelo de três invariantes permite a filtragem dos textos e justifica a recusa de outros tipos de sedutores e de sedução (Casanova, Lovelace ... em lugar de Don Juan). Os textos são selecionados em razão de seu grau de pertinência em relação a um modelo, e não em função de suas qualidades estéticas.
Para tanto, a diacronia não é esquecida, nem a especificidade de cada texto ou a importância de “textos-carrefours”, como Don Juan (1815) de E. T. Hoffmann, onde se encontram três gêneros: uma narrativa, sua retomada da representação da Ópera de Mozart , Don Giovanni;
um ensaio outras tantas “viagens através sobre o personagem de Don Juan. A poética do mito se constrói com as diferentes leituras do corpus, como das formas”;
a invariante (que se torna ,pois, variante) da morte e do castigo de Don Juan. Esta se revela um dos tempos fortes do estudo de Jean Rousset.
Seria, porém, cair num estruturalismo caricato, se pensasse que todas as invariantes se valem. Mexer no “mitema” da morte, do castigo, é alterar a lógica primeira do mito, modificar seu conteúdo, seu alcance, sua significação. O trabalho poético sobre o castigo não envolve somente um parâmetro formal: ele diz respeito à matéria mesma do mito, o sentido que ele pode ter numa sociedade, em uma cultura dada.
O famoso e enigmático “meu salário, meu salário” do personagem Sganarelle, no Don Juan de Molière, lançado depois do castigo cuidadosamente encenado se encontra recolocado no final para lembrar que a peça é constituída segundo o principio do teatro no teatro. Na verdade é uma peça onde todo o mundo tem um duplo papel, uma dupla linguagem, onde o personagem de Don Juan e seus interlocutores, o par patrão/empregado não param de experimentar situações dramáticas. Eles se mascaram, a peça coloca constantemente Don Juan em situações dramáticas novas, face a personagens diferentes (o pai, um pobre, um aristocrata, perante dois irmãos ao mesmo tempo, enfim perante uma estátua).
A peça faz de Don Juan um personagem de comédia dentro da comédia (...).
O estudo poético do mito é esse tempo de leitura no decorrer do qual as informações da história convidam para, autorizam perspectivização ( mise en perspective), com a finalidade de uma interpretação. Isso pode ser chamado a lógica do mito, no mesmo sentido que se fala de lógica da imagem. Em ambos os casos, cabe inferir uma interpretação baseada sobre um cenário, uma fábula, sua elaboração em seqüências constitutivas, suas alterações possíveis, suas derivações (ou bifurcações) em relação a um esquema inicial. Estas merecem uma explicação: interna, quanto à economia do texto em estudo; externa, no que tange ao imaginário de um escritor, de uma época, de uma cultura.
8. MITO E IMAGINÁRIO
O mito literário, sob forma de texto, exige uma reflexão, uma interpretação da história sempre singular, exemplar, que foi re-desenrolada perante o leitor, o espectador, informado provavelmente, como o escritor, acerca de outras histórias anteriores ou paralelas, contemporâneas. Não há estudo do mito possível sem consideração sobre a recepção do mito.
8.1 RECEPÇÃO E INTERPRETAÇÃO
Como o notou André Darbezies, há mais Faust alemãos do que Joana d’Arc, mesmo se o mito francês tem sido objeto de uma obra de Schiller.
Os mitos provocam entusiasmo coletivo: houve, segundo Darbezies, uma faustomania na época do romantismo. Os mitos se interpretam: houve um escritor (Grable) que produziu um Don Juan und Faust em 1829. É bom notar que tais contaminações ultrapassam o simples jogo intertextual de temas ou de modelos. Os mitos se afastam de seu contexto de origem e se “naturalizam”.
Eles falam a língua do imaginário onde se radicam: o argentino Estanislao Del Campo compõe um Faust à Buenos Aires, peça em que um “gaúcho” assiste a uma representação do Faust de Gounod. Uma história mítica, pois, pode ocultar uma outra. Regularmente, a peça espanhol de Calderon, El mágico prodigioso serve de complemento a um programa sobre o mito de Faust: trata-se de um gosto perverso para “falsas janelas” (Pascal)... Mas todo pacto com o diabo não “produz” necessariamente um mito faustiano: Calderón retomou um fundo folclórico local e uma tradição nacional (em particular uma peça anterior de Mira de Amecua) e emprestou fartamente da Lenda Dourada(... )Portanto, cuidado e cautela(...).
8.2 UM REPERTÓRIO PARA O IMAGINÁRIO
O interesse maior do estudo do mito de Faust por André Darbezies (Le Mythe de Faust, Paris: Colin, 1972), reside na vontade de pôr em perspectiva a história de Faust e a história da cultura com a qual ela dialoga; de a pôr em paralelo às outras histórias oriundas da cultura ocidental (a de Don Juan,por exemplo) que ela ladeia e cruza, com as quais ela coexista: os mitos seriam portanto, assim como os temas, um repertório imaginário, em que podemos nos abastecer.
- A LEITURA DO MITO DE FAUST
No século XVII e no século XVIII, Faust tomou praticamente o lugar do tipo antigo do mágico e da bruxa. Ele confere a esse tipo tradicional sua “figura moderna”. A época romântica vai fazer antes de tudo com Faust “um Don Juan amoroso conquistador quando não um blasfemador elegante”. O que aproxima as duas figuras e as duas histórias, não é tanto a catástrofe que sanciona seu excesso quanto essa “aspiração ideal e ufanista” que elas encarnam aos olhos das gerações românticas.
Da mesma maneira que Faust cruzou Don Juan, o século XIX articulou o encontro de Faust com o judeu errante, o Manfred de Byron, Zarathoustra e Paracelse. Esses encontros e cruzamentos se explicam pela vontade de achar figuras e histórias nas quais a revolta, o tiranismo, as aspirações insaciáveis do ser humano possam caber uma forma, de resto, flexivel e suscetível de metamorfoses diversas (lei de flexibilidade de P. Brunel).
Mas é com Prometeu que o “contágio” se manifesta mais freqüente e mais profundo, o Prometeu da revolta, do progresso, aquele que promete ao homem sua “salvação com força própria”. Ora, escolher esse caminho, é deliberadamente privilegiar “um dos dois pólos do mito”, a saber “o dinamismo do homem”, e esquecer ou recusar “o limite trágico que marca o engajamento no mal”. A esta etapa, o mito de Faust toma toda a sua amplidão e desvela a sua razão de ser, sua mensagem essencial (não falarei de mensagem em literatura, mas de processo de significação.*). André Darbezies mostra que a história de Faust está estruturada por uma experiência cristã e ocidental do homem, de sua liberdade e de sua responsabilidade pessoal. O homem do Ocidente não se identifica com Faust, nem ao “homem faustiano” como o pretendia Oswald Spengler. Mas Faust fica numa de suas imagens privilegiadas, talvez a única realmente viva entre as antigas figuras míticas.
Qual é a leitura que foi praticada para chegar a esta conclusão?
Escutemos Darbezies mesmo: “o estudo de um mito ou de um tema literário não se reduz a um catalogo heteróclito de ditados ou de citações tiradas violentamente de seu contexto. Entre todas as variações da narrativa de Faust, foi necessário buscar uma lógica constante. Da história, foi se destacando uma certa individualidade e de uma relativa elasticidade : ela reage diversamente aos eventos, às idéias, aos slogans; ela tem suas repulsas e seus tropismos; ela se impõe, em uma larga medida ao escritor, mesmo genial (sobretudo genial) que gostaria de brincar com ela segundo a sua fantasia”.
É portanto sobre a permanência do mito, sua convertibilidade, sua contextualização relativemente ampla (mas não ilimitada, mas obedecendo sem dúvida a alguns princípios não da obra literária) que se deve refletir. Porque Faust nunca foi ligado ao materialismo grosseiro nem ao uniforme coletivista? Suas origens parecem bem ser de uma concepção espiritual e pessoal da vida. Tal é o que comprova a releitura da história mítica.
A originalidade do mito de Faust, segundo Darbezies, decorre da tensão dramática engendrada entre dois pólos opostos. O elã /o impulso) do homem e o peso do mal sobre ele. Um não pode existir sem o outro, tanto para Faust como para Don Juan : tal é talvez a razão do interesse constante do público. O mito de Faust é ao mesmo tempo afirmação do homem e advertência sobre os limites da condição humana. O mito, lido por André Darbezies, como “narrativa simbólica de uma situação existencial e exemplar”, é por conseguinte, indissociável daquilo que chamamos de “imaginário, o mito pode conhecer etapas, elipses, desaparecimentos e renascimento. Mas ele supõe uma continuidade feita de retomadas. Porque a história mítica tomou uma “ressonância coletiva”.
8.3 DA POÉTICA À HERMENEUTICA
O “esquema de evento” (noção tomada da antropologia estrutural de Lévi-Strauss) é como retomado, investido por cada geração. À perspectiva assaz poética de Jean Rousset, se acrescenta a perspectiva hermenêutica guiada pela vontade de compreender a amplidão histórica e cultural de uma história. A de Faust ,já faz quatro séculos, é a história de gerações sucessivas, tendendo a ceder a seu sonho de grandeza ou de sucesso. À cada geração nova, o mito relembra que cabe ao homem escolher a sua vida, ser criador ou gerador de si. Sem dúvida, a interpretação de uma história em que o pacto com o Diabo é o núcleo inicial e central, pode dificilmente esquecer perspectivas religiosas, morais ou filosóficas. É da tarefa do comparatista ( ou do estudioso em literatura em geral ) isolar o escopo consubstancial à história tornada mito. A natureza, a tonalidade da história contam bastante no objetivo interpretativo.
Com O Mito de Édipo (Colin, 1974), Colette Astier mostrou as possibilidades muito diversas, do ponto de vista da escrita (teatral, romanesca), de uma situação por definição intangível. Com o mito dos gêneros estudado por Jean Perrot (Mythe et littérature sous le signe des jumeaux, PUF, 1976), o par de gêmeos reenvia a relações binárias sobre as quais se organiza o pensamento primitivo. O mito da metamorfose (Colin, 1974) aparece a Pierre Brunel como o arquétipo dos mitos. Mas há exceções e sobretudo níveis poéticos. A metamorfose pode ser um “simples” tema literário quando ela se reduz a uma idéia, a uma proposta geral. Às vezes, são ainda afloramentos, como nos Cadernos de Laurids Brigge onde Rilke conserva apenas o momento da metamorfose na sua fonte. Há imagens, comparações, reminiscências, que são signos de um “empobrecimento” do mito, tornado “quadro vazio”, um instrumento ou uma “pura decoração”. Também, depois de distinguir a metamorfose vertical (que reúne os seres) e a horizontal (que os faz passar de uma figura para uma outra, de acordo com o modelo de Proteu), e depois de refletir sobre a noção de fantástico (que supõe quase sempre a metamorfose), Pierre Brunel chegou a colocar a questão essencial para onde se dirige a metamorfose como história mítica: não se trata de juntar seres ou de mudá-los, mas de descobrir os “seres que são postos juntos entre os vivos”, “o animal que nos tornamos” ou que “cada um carrega dentro de si”. A metamorfose se torna então a escritura de uma descida a si mesmo e atravessa o limite entre a matéria e o espírito.
Um mito, a metamorfose? Sim, mas também uma metáfora, e também uma alegoria. Metáfora porque finge descrever o outro para descrever o mesmo ou sugere um evento que não aconteceu (o homem de Apuleo que se tornou jumenta fica ainda um homem). Digamos alegoria em suas utilizações modernas (por exemplo, o Rinoceronte de Ionesco), e mais profundamente no sentido da alegoria da escrita, da literatura, como nas aventuras do Nariz de Gogol: de um lado, o Nariz mostrou que se pode suscitar a impressão que existe um processo de sentido alegórico que é de fato ausente; de outro lado, ele conta as metamorfoses de um nariz que narra as aventuras da própria alegoria.
8.4 MITOLOGIAS E MITO PESSOAL
Na perspectiva da interpretação do mito , ou seja, do ensaio para passar do esquema, do modelo de múltiplas variantes, a uma síntese, podemos finalmente anexar a noção de “mito pessoal”.
8.4.1 UM MÉTODO: A PSICOCRÍTICA
Não se trata aqui de um jogo de linguagem fácil, de uma dessas significações vagas que a palavra mito autorizaria. A noção recebeu precisão técnica da parte de Charles Mauron (Des Métaphores obsédantes au mythe personnel, Corti, 1963) e procedeu de uma tentativa de aplicação de uma certa psicanálise à Literatura. O mito que descobre Charles Mauron resulta de superposições de textos, de um mesmo autor (um ponto de método importante). Essas superposições fazem ressaltar redes de associações de imagens obsessivas. A repetição, involuntária, conduz à imagem de um mito pessoal, interpretado como sendo a expressão da pessoalidade inconsciente do escritor: os resultados da leitura, como sempre em psicanálise, são afrontados aos dados biográficos.
Os princípios de leitura – a superposição dos textos em particular – são próximas dos que foram preconizados para o exame da estrutura, co-esquema do mito. O mito pessoal supõe, ele também, um cenário mínimo. Se a noção aparece aqui tomar indevidamente o lugar que ocupa, temos de admitir que existe entre mitos antigos e personalidades de escritores, correspondências singulares. Como o nota Pierre Brunel no final de sua Mythocritique: “ A cada escritor, seu mito: Valéry e Narciso, Rilke e Orfeu, Camus e Sísifo. Gide, que flertou com muitos mitos gregos antes de se confundir-se/ coincidir com Teseu na sua última narrativa,sugeriu o nome de Prometeu como “padroeiro ” dos escritores.
A observação é um convite a praticar uma Literatura Geral e Comparada, que deveria se contentar em articular, em uma relação explicativa, esclarecedora, mito e escritura, esquema mítico e imaginação criadora.
8.4.2 UM ROSTO DO MITO D’ORFEU
A obra, desconcertante ao primeiro contato, do romancista argentino Ernesto, Sabato, pode ser relida ao confrontá-la ao mito de Orfeu (D. H. Pageaux, E. Sabato ou la littérature comme absolu, ed. Caribéennes, 1991).
De onde provém aquilo que de saída era uma hipotética aproximação? De passagens fortes, essenciais e no entanto fugidios da poética de Ernesto Sabato, quando ele fala de uma descida aos infernos, e de uma ascensão; quando ele quer dar conta do trabalho de romancista, de citações de Um homem no subterrâneo de Dostoievski, que ele admira profundamente. O mundo subterrâneo, infernal, compõe uma série de ocorrências e de seqüências que se podem chamar de metáfora obsessiva (ver por exemplo a cena inaugural de Sobre Heroes y Tumbas, trad. Alejandra, Seuil.).
Essas primeiras leituras devem ser confrontadas com a história de Orfeu, com vista de uma superposição de dois esquemas: o esquema estável, conhecido do mito (cf. Eva Kushner, Le mythe d’Orphée dans la littérature française contemporaine, Nizet, 1961), e o esquema que se delineia na obra e nos ensaios de Sabato. A história mítica d’Orfeu se compõe ,de fato, de três histórias e seqüências ou sucessões de seqüências fundadoras:
- a descida aos infernos ( a história de Eurídice, da qual Vergílio deu uma versão no canto IV das Geórgicas)
- Orfeu poeta e sacerdotes.
- A devoção em pedaços pelas Bacantes.
Esses três componentes se encontram na reescritura da vida, a espécie de
confissão que é Abadon (em francês, L’Ange exterminateur, Seuil), ou em seu universo
romanesco (o pintor Juan Pablo Castel em El Túnel / Le Tunnel, Le Seuil).
O homem dilacerado é uma das grandes obsessões da romancista, do ensaísta. A obra está ela também submetida à fragmentação, ao desaparecimento. No entanto, paralelamente a tais obsessões da obra se afirmam a vontade da unidade, o papel do escritor de ser fundador de palavras, o Logos Träger, o poeta-testemunha, tal como Orfeu, que traz a civilização aos humanos. Essa missão do poeta coincide com a teoria da arte como “revelação” em Ernesto Sabato; influenciada talvez pelos românticos alemães. A noção de “redenção” pode ter ressonâncias cristãs e filosóficas. Mas ela reenvia também à idéia de “redenção” pelo canto?, indissociável da figura de Orfeu critianizado. Influi, a idéia de uma arte “fundadora”, de uma escrita romanesca que seja uma “Ontofania”, ou um princípio estético, tal como Rilke em “O Canto é Ser” (Sonetos de Orfeu, I, III). A obra de Sabato, que se refere de modo obsessivo ao tenebroso e aos infernos, encontrou o mito de Orfeu, e a história mítica é depositada, viva e latente, no texto. E se o romancista fala tantas vezes de “profundidade”, é sem dúvida no sentido de Jean-Pierre Richard em Poésie et Profondeur: “Trata-se de atravessar a profundidade e de voltar libertado, fraterno”. Princípio ético e estético a uma só vez; figurado de vez, primordialmente, pelo vates inspirado em o nome de Orfeu.
Os mitos antigos não são os únicos a ter o privilegio de se tornarem mitos pessoais. Um espaço privilegiado, pela biografia e escritura, pode se transformar em mito pessoal. Assim o espaço do Caribe, a Mediterrânea das Antilhas para o Cubano Alejo Carpentier. Ou Veneza para Paul Morand em um livro que tem quase valor de testamento: Venises. Em ambos os casos, um espaço se torna matéria de escrita e principio explicativo da vida e/ou obra do escritor.
8.4.5 A LITERATURA COMO MITOLOGIA
Em The Educated Imagination (1984), Northrop Frye colocava, em uma vigorosa síntese, que a literatura fazia o mesmo trabalho que outrora cumpriria o mito, pois literatura e mitologia pertencem ao mundo que o homem constrói e não ao mundo que ele vê. O mito, mesmo quando é fala poética, está do lado do Logos, pois remete à ordem da cultura e não da natureza. Neste sentido, estudar os mitos, é para o comparatista, começar a se aproximar da questão poética por excelência: O que é escrever?
O processo de mitização parece se confundir com o processo de civilização, entendido como apropriação progressiva pelo homem de tudo que não pertence à ordem do Logos, graças às suas capacidades criadoras individuais. Os mitos participam, portanto, desta empresa infinita, individual-coletiva que Hölderlin definiu nesses termos: “É poeticamente que o homem mora nesta terra”.

Recife, João Pessoa, Janeiro de 2007.
Digitação generosa da Mestranda Flávia Andrade do Amaral

sexta-feira, 26 de março de 2010

Mito e Metáfora

Uma das noções-chaves da Hermenêuticde Ricoeur é amétáfora que por sinal está estreitamente estreitamente associada à Metáfora.
Não são recusados aqui os trabalhos consideráveis de Mircea Eliade onde o mito é definido como uma narrativa primordial, organizadora da vida cultural e da caminhada de um povo em direção de seu destino. Já redigimos uma aula-conferência sobre ''O mito ontem e hoje'' . Mas aqui o contexto teórico difere sensivelmente, devido ao aspeto ético da Hermenêutica de Ricoeur- o lado teológico de Eliade aparentando um e outro estudioso.
Voltamos a repetir: o mito pertence ao regime metafórico. Uma ''autêntica'' figuração mítica fica na dependência da relevância de nosso conceito da metáfora. Ora existe concepção metafórica exclusivamente inclinada para a racionalidade ontológica e que não desagua, portanto, no ético-escatológico.
O racional hesita a se submeter ao ''trans-'' da ''trans-figuração''. Esse ''trans-'' exige o que exprime a expressão de Blanchot :Le pas au-delà, o passo além do passo, que coincide bem ao salto no buraco seguro chamado ''fé''. Na óptica do sagrado antropológico, não importa que essa f'é seja cristã, pagã, eclesial, não-eclesial, uma vez que se dá em termos de transcendência (mesmo à escala humana, segundo R.Garaudy) e em termos de sentido fundamental da vida . A ética de Ricoeur é mais exigente. Nela é banida a lógica do "próprio" e do "familiar" (o habitual); esta cede seu espaço ao "não-próprio" e ao "estranho" (Richard Kearney:1984:190, nota). A propósito da metáfora da "casa" desenvolvida por Heidegger em Lettre sur l'humanisme, Kearney explica esse desterro do próprio (correspondente ao sentido adquirido) e ao conformismo interpretativo:
“Como trans-figuração, a metáfora nos informa acerca de uma 'casa' pensada a partir do ser (o "poder-ser" do sentido), que este lugar não é apenas transferência do familiar para o fundamental, mas relação do fundamental ao familiar, relação essa que possibiliza o familiar e que faz que o familiar se torne afinal estranho, estrangeiro, não-próprio e não-apropriável".(R.K:O.C.,p.190).
Nos anos 60, em consequência da sua associação com o texto metafórico, o mito padeceu de uma certa hostilidade em certos meios filosóficos. Esses contemptores se recrutaram entre os defensores de uma "Hermenêutica da suspeita" (expressão de Ricoeur), nomeadamente os seguidores de Freud, de Marx, Roland Barthes de um lado; Levinas, R. Bultman, R. Girard de outro lado. Curiosamente, esse último grupo congregou pensadores do religioso. Grosso modo, os primeiros baseavam sua rejeição quer numa ideologia da representação que ligava o mito ao primitivismo de uma certa pré-história da luta sócio-econômica (Marx), quer numa representação tributária da estratégia capitalista que visava a uma fetichização do ser ou do consumo (Barthes). Por vezes, o mito passava neste primeiro grupo por "uma projeção (...) sublimada das pulsões libididinais reprimidas" (R.K,O.C.,p.191). No olhar destes estudiosos,o mito se resumia em "uma transposição enganadora e 'tática' que predeterminava e ocultava manobras condicionadoras" (O.C.,p191). Daí a necessidade de uma terapêutica de de3mascaramento (Barthes, Mitologias ).
Do ladd dos filósofos do fato religioso (o segundo grupo) se encontram alguns estudiosos que recusaram o fenômeno místico por medo de uma idolatria do sagrado a-religioso que se popularizava na Youth culture, nas importações "religiosas" massivas da místi9ca indiana no país do Tio Sam, fénômenos estes que desencadearam uma diversidade de - ismos sectaristas..
A exemplo de Barthes, era preciso, porém, desmitologizar. Pós o erro verdadeiro residia, no que tange ao mito, na projeção sobre a sua essência daquilo que era apenas desvios “regionai”.Pior ainda era cair num reacionisme hermenêutico de pendaor determinmista, ou seja, de praticar uma Hérmenêutica arqueológica consistindo em remontar às fontes sob o pretexto de guardar ao mito a sua pureza promeira.. Aí é que intervenha Ricoeur. Elew rompeu o circulo encantado da causalitdade e da volta passadista ao sebntido antido do mito., protestou contra essa imanência interpretativa e reivindica no lugat da restituições das figuras míticas o seu sentido escatológico(Kearney,1984,p.193).Mais do que isso, Ricoeur repudiou que o mito fosse enquadrado numa ideologia da representação. Pois, mesmo quando se trabalha com o representado, a dinâmica mítica desliza para um horizonte no sentido husserliano, , move-se para uma a alteriodade, orienta a interpretação na direção de algo ainda invisível ou não dito, de uma espécie de mundo a revelar de “universos a inventar”, na movência de uma “intencionalidade de figuração linguageira”(Kearney,1984:194) A Hermenêutica arqueológica, de índole determinista. Aí interveio Ricoeur. Ele rompeu o círculo causal da imanência hermenêutica que se afirmava e restitui às figuras míticas seu sentido escatológico (R.K,O.C.p,193). Além do mais, o mito não está calcado na ideologia da representação. Mesmo quando trabalho com o representado, ele desliza para um "horizonte", uma alteridade rumo ao invisível, à revelação de outros mundos, de outros sentidos, a "universos ao mesmo tempo inventados, na movência da “intencionalidade da figuração linguageira" (R.K, O.C., p194).
Uma peculiaridade do mito (e também do imaginário e do sagrado) é sua plasticidade ambígua do lado do receptor. Aí vem à tona uma exigência ética, face ao que não é necessariamente bom nem necessariamente mal. O mesmo evento mítico que libera aqui uma imagem mental de tipo heróico e diurno (o primeiro regime das Estruturas Antropológicas do Imaginário de Gilbert Durand) libera lá uma imagem mental de tipo eufemístico e noturno (o segundo regime das Estruturas Antropológicas do Imaginário de Gilbert Durand).
Mais um ponto de suma importância: a necessidade de uma releitura periódica dos mitos do passado. Ela se faz sentirnos escritores e artistas, na vida cultural , concomitantemente na consciência interpretativa, mediante una atenção vigilante ao surgimento de novos mitos . A estudiosa de Tel Aviv Ruth Amossy detectou alguns mitos emergentes no Star System, ao passo que Sherry Turkle (in Les enfants de l'ordinateur. Denoël, 1986) descreveu um certo neo-funcionamento mítico em torno do computador, entre os hackers do M.I.T. O que não podemos nos permitir é reduzir o mito à "simples codificação de uma mensagem lógica ou empírica"; devemos "respeitar as suas potencialidades transfigurantes", na autenticidade em que se dá o objeto representado, na esteira construtiva da Fenomenologia Hermenêutica de Paul Ricoeur

Referencias (parciais)
Kearney, Richard, "Heidegger, Dieu et possible" in Heidegger et la question de Dieu. Colloque franco-Irlandais. Paris. Grasset.1981
Kearney, Richard, Poétique du possible: Phénoménologique herméneutique de la figuration. Paris. Beauchesne. 1984.
Kearney, Richard, "Heidegger's concept of the possible in Philosofical studies. Dublin 1981.
Kearney, Richard, "Myth as the bearer of possible worlds : Interview with Paul Ricoeur", in The Crame Bag Book of Irish Studies, ed. by R. Kearney and M-P. Hederman. Dublin. Black-water Press, 1982.
Kearney, Richard, The Phenomenology of Imagination. University College. Dublin, 1977.

OS MITOS NA PSICANÁLISE

Mitos e Processos inconscientes

Os mitos - mitos de Édipo,de Prometeu,de Narciso, da horda primitiva, etc - são de um grande auxílio para a compreensão dos processos inconscientes. Salvo o Édipo, depois de se valer deles um tempo como ilustração ou como analogia de certos processos inconscientes, Freud os promoveu ao mesmo nível do que os sonhos e as fantasias,. a fim de se demarcar do uso que deles fazia a simbologia de Jung. .Pois Carl-Gustav Jung os interpretava isoladamente do processo inconsciente stricto sensu, como que no esquecimento de seu caráter polissêmico, e dentro do quadro nocional assaz problemático chamado “inconsciente coletivo”.Ora Freud percebia por trás do Inconsciente coletivo a sombra duma hipótese filogenética que, depois dum flerte temporário, ele acabará por repudiar. Passamos sob silêncio as conjunturas que determinaram o fundador da Psicanálise a tomar, em uma dada época, certa distância do mito como assunto de pesquisa. É até curiosíssimo que o mito rei de seu sistema analítico, o mito do Édipo, não tinha recebido uma atenção primorosa.Nenhuma monografia de grande porte lhe foi dedicada..E sabemos hoje que não há Psicanálise freudiana sem o mito de Édipo, nem simultaneamente (é preciso dizê-lo logo para não se estrepar) sem os processos primários do sonho (condensação, deslocamento, inversão, figuração, ambivalência) Quase todas as outras noções, inclusive a castração (privilegiada por Jacques Lacan), inclusive os mitos de Eros e Thânatos (vulgo Vida e Morte), o primado da identidade e do desejo sexual, se situam no horizonte do conflito edipiano. Do ponto de vista de uma Mitodologia, Édipo tem, portanto, uma extrema fecundidade; suscitou e continua suscitando criatividade, inumeráveis re-escrituras por parte dos seguidores de Freud .Mesmo Lacan se deixou seduzir por este mito cardeal, essa matriz interpretativa em sua leitura de Hamlet de Shakespeare. A glória de Shakespeare, este genial freudiano antes da letra, é de ter burilado o arquétipo de Hamlet, também de Otelo, de Iago, de Desdêmona, de MacBeth, todos tornados protótipos de inumeráveis personagens de ficções assim como a antiga Medéia.
Os mitólogos e os antropólogos, cuja perspectiva histórica, arqueológica (quando não estrutural e de pendor universalista como em Claude Levi-Strauss) nos remetem em geral para os primórdios da Humanidade ou simplesmente à civilização grega, definem o mito por uma estrutura narrativa, uma história exemplar, possivelmente detentora de uma pluralidade de códigos e de um ensinamento moral para a grande comunidade humana. Tudo isso é válido. O filósofo francês Luc Ferry acabou de confirmar isto no seu livro sobre a sabedoria dos mitos gregos.. Até Sigmund Freud (e também Carl Jung0, os estudos filológicos, históricos e antropológicos, de fato em estado de balbucio, abordaram a mitologia numa espécie de exterioridade do Psiquismo ou dentro dum esquema positivista, racionalizante. A leitura freudiana dos mitos insere estes na interioridade daqueles processos que acabamos de designar por “primários” Primários, isto é, antecedentes a todos os outros passos: quer no plano afetivo e intelectual, quer no plano comportamental prático ou místico. Primários, isto é também, pertencentes a uma energia livre, ou seja, uma força desligada de qualquer intervenção da razão. Psicológicos e inconscientes, tais são os mitos no horizonte freudiano. Por que? porque os homens têm uma '"obscura percepção interna""(Leibnitz) do mito elaborado milenários e milenários atrás. O papel da Psicanálise no trabalho interpretativo consiste em trazê-lo à consciência clara face a um personagem real ou fictício, face a seu comportamento, face ao seu dizer e ao seu dito, face ao seu não-fazer ou ao seu fazer,, face ao seu destino, levando em conta o contexto sociohistórico em que ele evolui. Na reformulação do psicanalista Didier Anzieu os mitos falam aos homens não do mundo exterior mas do mundo interior, não da realidade mas das fantasias assim como dos desejos e das angústias ligados a essas fantasias (.Favor entender “a fantasia” no sentido técnico: percepção, lembrança, representação deformada, reconstruída de acordo com as obscuras tendências do desejo ou com o assédio de angústia-originária mal / ou não identificada). As pulsões do Ego e seus representantes-representações são o objeto de uma recusa cega ou dum não-reconhecimento,- de um lado, em razão de um interdito do Superego; de outro lado, em razão do empenho constante dos processos secundários .O que são estes processos secundários? São forças que trabalham na fronteira da consciência / da realidade e do inconsciente, civilizando /'traduzindo os selvagens impulsos dos processos primários em conformidade com uma gramática aprendida ou inventada na hora . O E#go é o palco de tudo isso ele é uma alfândega, uma sujeito que vive no limiar, á mando de dois mestres a conciliar: O Id/ ou forças caóticas do ser, o SuperEgo ou a Lei/ a Ordem. O Anticaótico.
Porém o Ego que somos tende, entre O Id e o Superego, a se engraçar mais para o primeiro, para o mais primitivo, as forças pulsionais. Quando a lei ou a censura ameaça, as pulsões - pulsões de vida ditas pulsões sexuais ou de conservação, pulsões de morte ou de destruição – se encolhem,i.e., ficam recalcadas, de rabo entre as pernas; entretanto, sonsas por natureza,continuam agindo sorrateiramente (é i caso do trauma da infância) até no porão do Id, espalhando sintomas, até o dia D que encontram uma brecha pela qual elas retornam e procuram descarga ou passagem ao ato.(no caso do estripador- se não virarem Chico Xavier por sublimação) Este processo que acabamos de sintetizar explica analogicamente o encaminhamento do Mito no indivíduo e no coletivo. Há momento da história do individuo ou da vida coletiva onde tal Mito desaparece e vive subterraneamente,. Há momento onde ele volta com toda força ao sol do meio dia.
Gilbert Durand e Michel Maffesoli acham que hoje Dionisos, o Deus mítico dos prazeres, da embriaguez por todos os tipos de drogas, retornou. E também, neste auge das novas Comunicações o mito do Hermes, o mensageiro dos Deuses está entre nós nos movendo , está me movendo neste momento que estou lhe escrevendo esta apostila inspirada por um protótipo que perdi de vista no caminho andando conforme a minha inspiração, isto é, enveredado em uma re-escritura traiçoeira.
Não foi estabelecido ainda a quantidade de mitos que atravessam a obra de Freud., rivalizando com fantasias e sonhos. Certas narrativas de sonhos combinam mito e fantasia. O tradutor desta apostila, eu Sébastien Joachim seu servidor, recomenda fervorosamente aos interessados em Psicanálise, o modelo de análise que constitui a leitura do Sonho do Unicórnio por Jean Laplanche ou, melhor ainda, a versão portuguesa de Psicanalisar,obra do lacaniano Serge Leclaire . A leitura de Leclaire foi comentada por Anika Lemaire em seu interessante Lacan: uma introdução .
Vamos apresentar os elementos que embasam a análise do mito num estudo psicanalítico, com o apoio conceitual de Melanie Klein e com a ilustração de alguns mitos famosos na Literatura. Concluiremos por algumas afirmações sobre a importância do mito em nosso trabalho interpretativo e em nossa vida à exemplo de Luc Ferry acima citado.

2-Elementos característicos do mito na análise.

Voltamos a afirmar que um mito é uma narrativa, um discurso de ação dramática (pelo menos potencialmente) composto no mínimo de um enunciado, de preferência de um, duas ou várias frases. O enunciado é supostamente grávido de uma fantasia que nos cabe descobrir..Aquela fantasia por seu turno está acompanhada de um afeto, uma emoção.ou um sentimento Por exemplo, o mito da Medusa, história de uma cabeça separada do corpo, traz consigo, em tese (pois nossos jovens de hoje adoram o horrível !) um sentimento de angústia, e esta angustia é aquela que foi identificada como o componente inerente daquilo que Freud e Lacan convém chamar de castração..Onde jaz uma castração ou perda simbólica, se detectam certos traços acompanhadores da angústia tais como, no caso da Medusa, um mal-estar, o espanto, o terror perante os serpentes erguidos sobre esta cabeça de uma terrível figura feminina, um rosto enquadrado por cabelos indiciando um órgão genital cercado de pelos pubianos, uma dor estampada no rosto, incitando à fuga mais do que à piedade.Esses mitemas são evocadores duma mãe fálica (aquela mulher braba, mulher macha). E um tal espectro simboliza a descoberta pela criança de uma castração imaginária. Este exemplo nos sugere duas colocações de peso :
1- o analista percebe intuitivamente que a narrativa mítica “Medusa”, - (mas poderia ter sido Medéia, Macbeth, e outras narrativas da mesma família, inclusive Barba Azul ) – é independente das línguas particulares e tem como constituintes um encadeamento de frases que obedece a uma lógica outra que a da razão. Os elementos, ou mitemas, narram geralmente eventos passados (Era uma vez...) que são imaginados para acalmar um pouco a nossa curiosidade ou nosso medo face aos enigmas / que recobrem a nossa origem, o sentido de nossa presença neste mundinho, os possíveis de nosso Futuro (principalmente A Morte e seu após). Muitos pastores ganham a vida ofertando soluções mágicas.a respeito desses enigmas..Nessas narrativas,nada corresponde totalmente à ficção nem totalmente à realidade. Triunfa o entrelugar..Quer do tamanho de um Haikai, ou do tamanho da Odisséia de Homero ou de Ulisses de James Joyce, os contos sobre o destino humano chamados narrativas míticas, embora habitualmente desenvolvidos com uma grande participação dos processos secundários (em virtude da vigilância estilística referente à lei do Pai Gramatiqueiro), não deixam de ser penetrados por toda parte pelos processos primários,porque aí rebola a fada Imaginação..Todo o cuidado é pouco do lado do analista a fim que o texto não seja reduzido por uma interpretação de tipo racional ou unívoco. Procurem Semp ao menos duas hipóteses de sentido. Seria propositado testá-las tendo em mente a vontade de verificar a convergência das regras de produção inferido para o mito em processo, e a modalidade energética de se desfraldar dos processos primários, ou seja, as características oníricas destes..Quero dizer, observem a derapada da lógica enunciativa ou da coerência do encadeado dos enunciados SOB A PRESSÃO das elaborações primárias.Entendo por isso, as figuras de deslocamento (Isto por aquilo, gato por lebre, lá em lugar do aqui, ou burla da expectativa lógica0), de condensação (superposição ou junção de coisas que não vão logicamente juntas), figuração simbólica ( a bandeira, no lugar da identidade nacional, cortar os cabelos no lugar de cortar cabeças, escrever água por mãe, dizer rebento por filho, chamar uma obra poética de castelo como Ariano Suassuna em A Pedra do Reino, falar de cueca da mulher e de calcinha do Homem para sugerir uma mudança de escolha sexual), a inversão ( o céu no mar, o mar no céu, o pai tornado filho do filho em papel trocado), o homem em posição de mãe e a mãe em função de pai, adultificação de criança, infantilização de adulto: que é bem uma realidade da nossa ultracontemporaneidade).Veremos mais adiante que Melanie Klein, famosa analista britânica contemporânea de Freud, nos convida a emprestar esse caminho
2- o simbolismo do mito corresponde a uma fantasmática do corpo. Com efeito, o corpo, um corpo imaginário, está sempre requisitado nos mitos e nos sonhos. A cirurgia plástica é um mito distorcida de Isis e Osíris. Pensem um pouco neste mito mesmo todas as vezes que você se institui intérprete da literatura e da Arte: está aqui um monte de corpos desmembrados que solicitam recomposição, reunificação, jamais um livro passa mais do que pedaços de uma máquina à espera de uma montagem. Evite aqui o organicismo que dá tudo por encaixado in aeternum. Pelo menos, Desmanche e Recomponha. Não seja supersticioso. Toda obra é inacabada.Toda obra é Osíris em pedaços que Isis (você) penosamente, vai recompor, vai botar em pé. Pensem também no Mito de Sísifo: um corpo empurrando dolorosamente para cima um rochedo. O que está acontecendo por aí ?. Segundo o psicanalista Didier Anzieu, o significado disto é que os desejos, os afetos,a s angústias, as fantasias são apoiados nas funções do corpo, são articulados a regiões do corpo. Antes da aquisição da linguagem verbal, as crianças dispõem de uma figuração simbólica, que é uma sorte de pré-linguagem universal cujos significantes reenviam a partes do corpo. Não importa que seja corpo do infans, i.e., de criança que ainda não fala; corpo da mãe; na chamada Cena Primitiva ou seja , uma representação fantasiosas do menino safado olhando pelo buraco da fechadura do quarto de papai-mãmãe, e imaginando lutas livres, combates de monstros na cama: o olho imagina mais do que vê: é isso que é verdade, diria o radialista Datena..Tantos os Hermeneutas apegados à intencionalidade fenomenológica quantos aos Cientistas Historiadores da Mitologia passam ao largo da descoberta freudiana do Inconsciente sem mesmo se darem conta da prioridade do imaginário inconsciente do decifrador ou do re-escritor de aqui e agora sobre o que teria hipoteticamente existido num tempo das origens assaz nebuloso. Lendo um mito numa cadeira de textos da nossa modernidade, não devo me prender em prioridade à decodificação e atribuição de sentido de outrora,; minha tarefa principal é de acompanhar ativamente os meandros de um imaginário em estado de parturição de tentar captar a lógica dos processos, o trafegar lógico-alógico do mito até nas suas flagrantes contradições. De ontem para hoje, um mito não se repete.Não se cogita um restabele cimento de mito em sua pureza inicial. Mitos podem ser alegremente desmitologizados e distorcidos ao grande bem da comunidade receptora ou de onde germinou a nova versão , e também à gloria do poeta ou ficcionista que magistralmente deturpou tão bem o protótipo, ao expressar autenticamente a vivência mítica da sua época. Recomendamos neste particular os belos estudos de Hans Robert Jauss em Pour une Hermeneutique littérair e Nem uma organização mítica na pureza.. A análise não pode ser procura daquilo que foi, ela não é repetitiva . Não existe origem certa. Portanto não se concebe re-escritura fiel. Não existe dois analistas que pensam de modo totalmente igual o mito de Édipo. O mesmo complexo de Édipo acentua diferentemente seus componentes (pai-mãe-filho/filha, ou seus substitutos institucionais, cósmicos, antropomorfos ou não) de acordo com as organizações neuróticas em observação, segundo o TEXTO em observação. Por exemplo, no caso do histérico, o amor, a sedução incestuosa desempenham o papel de primeiro plano; no caso do obsessivo, o desejo de morte para o rival constitui o problema-chave; no caso do sujeito fóbico, tudo se articula em torno da angústia de castração. Uma abordagem psicanalítica consiste em pôr à luz, num individuo / texto singular, eventos-lembranças-organização defensiva, que fizeram do complexo de Édipo, para este sujeito, uma experiência singular, irreduzível a qualquer outra. A leitura toma emprestado do material a explorar uma igual singularidade.
Uma interpretação psicanalítica do mito se apresenta como tendo uma função sintagmática (as frases se lêem uma após a outra), mas ela se preocupa também com a função paradigmática: ela procura uma simbolização de processos inconscientes no plano da linguagem. Esses processos (por ex., representantes-representações da pulsão, mecanismos de defesa, angústia) são sempre os mesmos, mas se combinam de modo variado, se diferenciam na história da vida individual como na vida e no contexto cultural de uma coletividade. Universal, porém particular: tal é o Inconsciente, e tal o mito. Mas contrariamente a Carl Jung que se apega ao Coletivo, é melhor pensar junto o Coletivo e o Individual como faceta diferente da mesma medalha. Eu sou do Brasil, mas sou um individuo único no Brasil. O “homem público” desenvolve um imaginário coletivo, o individuo particular que ele é desenvolve um inconsciente particular, mesmo se o mito “homem público”, nele, denota uma solidariedade comunitária.

3- Contribuições de Melanie Klein

Didier Anzieu, perante o discurso racionalista e desafiador de mitólogos como a Historiadora Marie Delcourt, resolveu integrar as visões psicanalíticas de Klein às de Freud na análise do mito, ou seja, dos elementos míticos que se infiltraria em qualquer narrativa. Sabemos que Melanie Klein costuma remontar ao primeiro ano e até ao estado fetal em seus trabalhos teóricos. Foi ela quem incitou Anzieu a localizar certas fantasias fundamentais, por exemplo uma organização significante de poder, bem antes do período marcado por Freud para o complexo de Édipo. Em virtude disto, uma aproximação do ponto de vista genético (histórico) da psicanálise com o que há de mais fecundo na diacronia dos mitólogos modernos necessitaria duas condições já realizadas em Melanie Klein: a revisão por parte da psicanálise freudiana dos estágios de desenvolvimento (oral, anal, uretral, fálica), a renúncia à explicação filogenética, isto é, a explicação do desenvolvimento do individuo pelo desenvolvimento da espécie e vice-versa.

Freud começou a corrigir o atavismo filogenético assim como tendência moralisante dos mitólogos tradicionalistas, mas coube a Melanie Klein sublinhar com força antes de Freud que o mito transcreve em uma linguagem coletiva uma experiência interior fundamental; ele conta como os objetos internos ameaçadores são dominados , como os bons objetos danificados são reparados, como a clivagem do bom objeto e do mal objeto se "perlabora", se trabalha. Segundo uma expressão de Levi-Strauss, o mito é dotado de uma eficácia simbólica Para Freud, a função simbólica preenchia uma função de representação. Melanie Klein propõe uma hipótese melhor sobre a origem da simbolização: por ser incapaz de exprimir adequadamente as suas emoções e suas angústias para com as pessoas que ama ou que inveja, e que aliás não podem satisfazer todas as suas necessidades, a criança as transfere primeiro ãs partes de seu corpo e do corpo materno, e em seguida aos objetos que a cercam. Os símbolos representa esses objetos parciais (fezes, chichi, etc) e depois globais assim investidos. A simbolização preenche, portanto, uma função de perlaboração (=trabalho psíquico, que permite que o sujeito admita na sua vida psíquica elementos até então recalcados). A simbolização culmina no mito, onde não apenas os objetos parciais e globais estão presentes sob forma personificada,mas onde a função que a criou é ela mesma representada simbolicamente. (sic, Anzieu,p.134).A partir da segunda tópica (Id, Ego, Superego) Freud alarga a simbolização, para além das pulsões sexuais, à pulsão de morte. Melanie Klein, por sua parte, considera que a vida psíquica começa com as primeiras posições persecutórias e depois depressivas, seguidas da fase de reparação. A ela caberia enunciar o primeiro enunciado sobre a mitologia adequada `segunda tópica, quando disse: os mitos gregos (talvez todos os mitos, acha Anzieu , transpõem simbolicamente ás diversas formas e os diversos níveis de manipulação dos objetos internos pela mediação das diversas instâncias psíquicas (inclusive a memória).

Chegamos agora a idéia de que os símbolos são de caráter ambivalente, polivalente ,sexual ou destruidor. Freud ira mais longe, zombando ao mesmo tempo dos Hermenêutas Fenomenólogos e dos Junguianos sempre em busca de um sentido, ao declarar (in Anzieu, p.133): o verdadeiro simbolismo desvela e mascara ao mesmo tempo a pulsão interdita. Freud, contudo não tirou todas a conclusões da segunda teoria das pulsões e da emergência do princípio de morte. As contribuições de Melanie Klein constituem um prolongamento essencial do freudismo, ao chamar atenção sobre o fato de que todo material clínico ou de análise comporta temas de despedaçamento do corpo, de "devoração", de destruição por corrosão, de parentes combinados ( representação do pai e da mãe confundidos na mesma imagem), de mãe má e temível, de criança-monstro, de curiosidade para os seres que remexem no ventre da terra-mãe, de partenogênese, de boas substâncias danificadas., diríamos então: do Mal.

Restam mais duas considerações de método. É preciso, em uma boa análise, ter o texto completo do mito, e é preciso recolher estudos relacionados com o material transcrito e que focalizam real e especificamente processos inconscientes Um bel exemplo de estudo é o de Orgel e Shengold sobre o tema dos presentes envenenados de Medeia relatado por Anzieu . O que o texto mítico revela, dizem os autores, se baseia em três observações clínicas: no caso das dádivas vindas de certas mães. A função desses presentes é de manter a dependência simbiótica. Esta função é, à imagem dessas mães, ambivalente. Presenciamos ora dádivas generosas, suntuosas, da boa mãe a seu filho ou sua filha que fica apegado (a) a ela, ora dádivas traiçoeiras, destruidoras por parte da mãe má à criança que procura se afastar dela. Medeia, no começo da história mítica e dramática, deu a Jasão, ligado a ela, armas e produtos mágicos para triunfar do dragão e apoderar-se do velocino de ouro; no final, ela deu a Creuza, a sua rival ( Jasão a abandonou por ela) colar e túnica envenenados que a consumiram viva. Outros textos encontrados pelos autores acima mencionados comprovam a repetição dos presentes fatais, alternadamente benéficos e maléficos ao longo da vida lendária de Medeia. É o exemplo de uma aproximação bem sucedida entre mitografia e psicanálise pela mediação da teoria de bom e mal objeto de Melanie Klein .

4- Duas Análises: Freud e Melanie Klein

4.1- A análise por Freud do Mito de Prometeu

O mito de Prometeu recebeu um tratamento interessante de Freud num artigo pouco conhecido sobre o controle do fogo ..
O ponto de partida de Freud é fornecido por um rito de certas sociedades primitivas: apagar o fogo, urinando. A direção inconsciente desse rito parece aponta uma satisfação de desejos homossexuais. Na realidade exterior, esse rito traz consigo uma inconveniência|: ela priva o homem do fogo. O mito de Prometeu implicita que a renúncia ã satisfação uretral e homossexual seria a condição da conquista e da posse deste elemento civilizacional que é o fogo. Diversos sintagmas no discurso manifesto do mito expressam esse sentido latente , e eles o fazem mediante dois mecanismos : a figuração simbólica e a inversão no contrário.

Prometeu transporta o fogo roubado aos deuses no talo oco de uma cana, figuração simbólica do pênis,; e também simultaneamente, reparamos uma inversão no contrário, dado que , na realidade, no pênis, o homem abriga água do jacto de urina , e não o fogo que é o contrário da água. O ato de Prometeu é uma fraude: outra figuração simbólica. Os deuses gregos figuram não o Superego, mas as pulsões; aqui, porém, não é o Id / o isso, o desejo homossexual, que se encontra liquid-ado quando o homem renuncia a extinguir o fogo.

Prometeu é punido; um pássaro, abutre ou fênix, lhe rói o fígado : outro exemplo de inversão no contrário. Na Antiguidade, o fígado era a sede dos desejos . No discurso manifesto o mito, Prometeu é punido por ter-se deixado guiar por seus desejos..No pensamento latente, é o contrário: Prometeu oferece o exemplo de renuncia a um desejo, para o bem da civilização. Ora, parece que todo desejo de renuncia suscita uma resposta agressiva, já que Prometeu é punido; sua renuncia é percebido como algo desagradável, na lógica inconsciente deste texto mítico.

Um pássaro lhe devora o fígado: o pássaro é uma figura simbólica habitual do pênis; aqui é uma abutre ou, de preferência, uma fênix animal que renasce de suas cinzas, figuração simbólica da volta da ereção. A sensação de calor na ereção é aliás figurada pelo fogo. Assim, como no mito da Medusa (os cabelos erguidos sobre a cabeça, os serpentes apontando para cima), a volta da ereção vem consertar os prejuízos da angústia.

O material inconsciente, subjacente ao mito da conquista do fogo por Prometeu está ligado afinal à passagem da problemática uretral (crianças nascem da urina) e à problemática fálica (crianças nascem do esperma); o ato de mijar e o ato de estar em ereção preenchem duas funções do pênis fisiologicamente incompatíveis . A antítese entre as duas funções levam Freud a afirmar: "A antítese entre as duas conduz o homem a apagar com seu próprio fogo a sua própria água..Vale a pena citar na íntegra a conclusão de Freud sobre o mito de Prometeu :

A gente se pergunta se dever-amos-ia atribuir à atividade mito-poética o seguinte destino : produzir sobre uma palco uma representação disfarçada de processos psíquicos universalmente familiares, sem outra função que o puro prazer da representação. Não há como responder com certeza antes de ter previamente entendido plenamente a natureza dos mitos. Mas nos dois exemplos do fígado sempre renascente de Prometeu e da fênix que cada vez o devora , é fácil reconhecer uma finalidade precisa . Cada um dessas micro-narrativas do mito descreve o reviver-se dos desejos libidinais depois de sua morte posterior à satisfação.Cada um testemunha assim da indestrutibilidade de seus desejos: depois do castigo, o culpado parece ter a segurança de que , depois de tudo, no fundo do fundo, não sofreu de nenhum dano.

4.2-A análise da Orestia de Ésquilo por Melanie Klein

Anzieu os apresenta um artigo póstuma de Melanie Klein, datado de 1963, sobre a trilogia do poeta trágico grego Ésquilo, A Orestéia ou Orestia, segundo os tradutores. O intuito de psicanalista francês é de nos demonstrar como as percepções freudianas sobre a análise do mito ganhariam a ser retomadas e completadas. E um tal gesto de retomar e de completar tivesse sido qualificado de empreendimento de Literatura Aplicada por Pierre Bayard , se Melanie Klein não fosse suspeita de aplicar à Orestéia uma teoria antecedente ao ato de ler.

Mas antes de apresentar o resumo do artigo por Didier Anzieu, achamos útil , enquanto tradutor e comentarista, abrir um parêntese esclarecedor da teoria kleiniana do psiquismo. Neste respeito, reproduzimos um trecho de um trabalho nosso que foi publicado em Anais de Colóquio do ano 2003 .

Nossa própria exposição é tributária do livro do estudioso francês Michel Collot , La Matière émotion onde este começa por indicar para a razão de seu interesse para a psicanálise kleiniana: ela proporciona ,servantis servandis, uma teoria da criação cuja tese central é “a dialética da perda e da reparação, da construção e da destruição...”..Viram logo após as linhas mestras da teoria de desenvolvimento de Klein em duas fases capitais: a posição esquizofrênica, que corresponde à uma separação. Neste respeito, a não integração do ego e do objeto de desejo (ora bom, ora mal) , por exemplo, na escrita poética de Jules Supervielle (francês nascido em Montevideo), se denota por flashes de angústia. Mas felizmente lhe sucede a segunda fase, a posição esquizo-paranóide, a qual evidencia mecanismos de integração e modalidades compensadoras de comportamento, de reparação dos efeitos destruidores que ameaçavam de desencadear-se ou de se instalarem na fase anterior. Klein cunhou aqui dois conceitos: a introjeção e a reparação, que se tornam categorias de análise da criação (ao olhar de Michel Collot). O estudioso francês recorre oportunamente p. 130) a um dos discípulos mais autênticos e mais famosos de Melanie Klein, Hanna Segal emite esse pronunciamento decisivo no que tange ao nosso assunto :
“a dor do luto vivido na posição depressiva e as pulsões reparadoras
desenvolvidas para reconstituir os objetos amados internos e externos
são o fundamento da criatividade e da sublimação(,,,). Resultam
primeiramente da preocupação com o objeto do desejo/do amor e da
culpabilidade para com este desejo,e , em seguida, da vontade
consciente /inconsciente de reconstruir esse objeto, de preservá-lo e
de torná-lo imperdível (...). O ardente desejo da criança-de-mama de
recriar seus objetos perdidos o incita a pôr junto aquilo que foi
rasgado em pedaços, a reconstruir aquilo que foi destruido, a recriar
e a criar.”

Depois deste parêntese, voltamos ao artigo em pauta,
Klein mostra primeiramente como a posição persecutória é encarnada por Agamenon e Clitemnestre, o rei e a rainha. O Rei dos reis orgulha-se excessivamente de ter impiedosamente destruído Tróia e os Troianos. O objetivo oficial de Agamenon é de ajudar o seu irmão Menelas a reencontrar Helena seqüestrada, Mas isso não passa de uma racionalização de sua inveja destruidora. Esta paixão negativa produz em Clitemnestre e em seu amante Egisto o medo persecutório de ser por sua vez destruídos: isso se chama uma ação de retorção.A razão posta à frente por Cltemnestre no texto manifesto é a de que Agamenon não é homem a recuar diante de nada, uma vez que já tem se mostrado capaz sacrificar a sua própria filha Ifigênia. Ora, as duas situações não são idênticas, mas os envolvidos tem tudo a temer.

Em seguida, a posição depressiva esta encarnada por Orestes . Orestes hesita em matar Clitemnestre, apesar do deus Apolo, seu superego rígido, lhe tem dado a ordem. Electra o incita a executar essa ordem. Mas Orestes, filho de Clitemnestre, fraquejou perante a evocação dos cuidados e do seio que ela lhe dava quando era criança. Para cometer o matricídio, ele precisava ver a sua mão debruçando e gemendo sobre o cadáver do amante (Egisto). Orestes a matou por ciúme edipiano, não por invejo destruidor. Logo depois do assassinato ele foi perseguido pelas Fúrias (as Erinias), figuração simbólica do objeto interno perseguidor, ilustração do remorso de ter destruído o objeto amado.

A posição reparatória esta encarnada por Atena, - emanação de Zeus , o ideal do ego, isto é, o Superego construído em torno do bom objeto. Atena delega ao tribunal do Areópago o julgamento de Orestes.. Por sua voz preponderante, a mesma Atena decide da absolvição do réu. Orestes, livrado das Fúrias, acede ao superego regulador pós-edipiano. Ele reencontra a alegria e o trono.
Afirma conclusivamente Melanie Klein:

A culpabilidade, a necessidade imperiosa de reparação e de perlaboração da poição depressiva rompem o circulo vicioso das pulsões destrutivas engendrando a angústia de perseguição; pois esta reforça por sua vez as pulsões.. As crenças ctonianas ( referentes ao ocultado, aquilo eu é debaixo da terra, ou na barriga da mãe, no estado fetal) pertencem à posição persecutória. Os ctonianos representam os bebes que a mãe carrega dentro de si antes que estejam nascidos e que a criança tema de ter destruído por suas fantasias ciumentas e hostis.


Uma palavra final: Dizem que os mitos são os sonhos da Humanidade. Mas esses sonhos podem se revelar pesadelos quando os restos diurnos se ligam aos processos primários para exigir que o recalcado seja passado a limpo. Estejamos vigilantes em nossos sonhos.

Corolário:
o verdadeiro método de análise freudiano.

Reiteradamente vemos denunciando ultimamente, a heterodoxia de uma certa hermenêutica que se deu abusivamente por uma abrdagem psicanalítica, mas que não passa de uma filosofia da consciência que coloca a consciência no bojo do inconsciência, por trás de conceito como a intencionalidade, ou de novidades instrumentais tais como as chamadas Linguistic turn ou Narrative turn. Apesar de sua inegável honestidade intelectual, Paul Ricoeur, defensor de Freud contra seus detratores ,mas voltado para a teleologia e a construção de si mesmo no ato interpretativo , se revela por isso mesmo o mais ilustre representante desses "falsos amigos" da Psicanálise que, nas pegadas de Carl Jung, acabam por desvirtuar a descoberta de grande Vienense e a confundir a empreitada original deste com uma Hermeneutização do Inconsciente.
Eis a tese formulada e brilhantemente defendida por Mi-Kyung Yi no seu sólido trabalho intitulado Herméneutique et Psychanalyse, Si proches. si étrangères . Sintetizaremos rapidamente aqui a conclusão e os argumentos próximos da conclusão desse livro a fim de orientar os espíritos sobre o que é o método psicanalítico. Em certos de meus seminários, apoiado em Jean Forest e Pierre Bayard, já tentei definir, sem grande êxito, o que é, e sobretudo o que não é a Literatura. Volto tentando novamente, acompanhado desta vez de dois estudiosos do campo literário empenhados , eles também, em esclarecer o que poderia ser o seu domínio de pesquisa, em um livro a quatro mãos. Trata-se de Jean-Jacques Lecercle et Ronald Shusterman, L'emprise des signes: débat sur l'expérience littéraire

Em um certo sentido, os "mitos" (no sentido de inexatidões) que deturpam a Psicanálise são geralmente aparentados aos que rondam em tornam da definição do literário. Um e outro campo, de contrário a uma descoberta, procuram sem dogma predeterminado a Alteridade. O inconsciente é uma alteridade que surgem. Se pressioná-la. Ele foge para o recalque e ficamos com o nosso próprio narcisismo de pesquisador demasiadamente sério. O texto literário tem muito a dar. Ao se colocar no além do bem e do mal, ele resiste a toda moralização ou busca existencial planejada. Num e outro domínio, os melhores achados são frutos do acaso. Mas esse acaso só emerge se, na análise como na leitura , respeitamos três anti-regras :

1- a livre associação-dissociação que consiste em deixar o texto falado ou escrito vir até nós numa igual importância sem privilegiar nenhum elemento;. Pois a tarefa é antes de tudo ligar e conectar teimosamente em certos lugares, e noutros lugares desligar aquilo que está preso como um complexo;
2- a atenção flutuante vem completar a atitude de desprendimento e de democratização da escuta O Hermeneuta se orienta numa certa direção, ele é motivado por um sentido a construir e atribuir. O analista não tem objetivo prévio, não pretende desvendar um sentido, ele é um anti-hermenêuta quando predomina nele o construtivismo. A psicanálise, diz Jean Laplanche, é uma anti-hermenêutica toda as vezes que se considera que viver o sentido, elaborando-o importa mais do que procurar, achar, atribuir e encerrar a operação. Neste aspecto, Freud tem declarado a análise interminável..
3- A atitude interior. Essa expressão designa uma deontologia ou ética de trabalho. De um lado, o analista deve guardar a neutralidade, deve resistir a dar resposta como um sujeito suposto saber (Lacan). Ele evitará importar na cena de leitura ou de cura uma teoria maciça cujo efeito provável é o amordaçar do inconsciente. Ele ficará em estado de alerta no que tange aos seus demônios interiores, sempre à espreita, e que tendem a invadir contra-transferencialmente o palco e perturbar o diálogo analisante-analista, sujeito leitor- interlocutor texto.


Uma vez observadas essas regras, se tivermos sorte chegaremos um dia a descobrir paulatinamente nos desfiladeiros da leitura da alteridade para onde vai o texto, no lusco fusco fugidio em que se manifesta a indeterminada alteridade dos processos psíquicos. Talvez seja esta alteridade aquilo que nos levará ao que é a Psicanálise, ao que é a Literatura..
Sébastien Joachim, 26 de março de 2010.

FIM

Disciplina de Sébastien Joachim 2010


Universidade Federal de Pernambuco

Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística
Primeiro Semestre de 2010

Disciplina: Poética do Imaginário
Carga horária: 60 horas, 2ª feira –AM- das 8:30 às 12:30.

Ementa:
Mostrar que, nas malhas da literatura e da arte, segundo Gilbert Durand,Mircea Eliade e Paul Ricoeur, se elabora junto ao ato de criação um processo de simbolização e de mitização que envolve imanência e transcendência.

Programação
Ninguém ignora, em qualquer cultura que seja, que o mundo começou por uma palavra performativa. O ato de criação se inscreve na analogia deste ato de fala que abre sobre um mundo, o da obra em a sua forma-conteúdo.A Mitodologia ou as Formas Antropológicas do imaginário de Gilbert Durand solidamente referenciadas em inumeráveis especialistas, entre outros Gaston Bachelard e Mircea Eliade,Carl-Gustavo Jung e Paul Ricoeur, nos introduzirão à uma forma de crítica literária chamada Mitocrítica.
Em primeiro lugar, estudaremos a Imaginação produtora, pelo canal das noções de “schèmes”, arquétipos, símbolos, imagens e suas concatenações Em segundo lugar, faremos algumas aplicações a partir de alguns textos literários.Temos em mente explorar o tema do Paraíso perdido em estreita ligação com a simbólica do mal no mundo.
Fórmula pedagógica: Exposição magistral entrecortada pelas intervenções dos participantes
Protocolo de avaliação: exposição de cada aluna/o.A exposição terá como conteúdo um aspecto teórico e uma aplicação.

Bibliografia
OBS.-Os textos básicos são aqueles que são precedidos de um asterisco.
1)BERRIO, Antonio Garcia. Teoría de la Literatura, Madrid:Cátedra, 1994.[cf.especialmente os capítulos:Atividade fantástica, p.429-471; Imaginar, p.472-571+]
2)BOIA, Lucian. Pour une histoire de l´imaginaire. Paris: Les Belles Lettres, 1998.[Neste livro, o autor apresenta 8 Arquétipos que atravessam as culturas e que relacionam o humano com o infra-humano e o transcendente: parece ser uma fonte inesgotável de pesquisa]
*3)BRUNEL, Pierre.Dicionário de mitos literários.Rio de Janeiro:José Olympio,1997,939p.
3)BRUNEL, Pierre. Mythocrítique. Paris :PUF,1992
4)CHAUVIN, Daniele, André Siganos et Philipe Walter (org.).Questions de Mythocritique. Paris: Imago, 2005. 372p. (são estudos redigidos pelos mestres no domínio do imaginário, inclusive o professor J-J. Wunenburger)
5)DURAND, Gilbert. Mito, Símbolo, Mitodologia. Lisboa: Editorial Presença, 1982.
*6a)DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix, 1980
*6b)DURAND,Gilbert.Introdução ao Dicionário de Símbolos de GUERBRANDT,A .e
CHEVALIER, J. Rio de Janeiro: José Olympio,1976,
*7)ELIADE, Mircea. Aspects du mythe. Paris:Folio-Essais, 2005/1963 (tradução portuguesa na Perspectiva, Col. Debates.)
8)ELIADE,Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo :Martins Fontes,1995.
9)HORTA,Luiz Paulo (org,) Sagrado e Profano.Rio de Janeiro:Agir,1994.
10)KNOWLES, Christopher.Our Gods Wear Spandex.The secret history of Comic Book Heroes..San Francisco:Weisser books,2007.( os novos deuses do panteão dos Quadrinhos)
*11)LEGROS,P;MONNEYRON,F;RENARD,J-B;TACUSSE,L,P. Sociologia do imaginário. Porto Alegre,2007. Cap.VI: Imaginário e concepção do mundo (Mitos na História e na política;religião e imaginário;ciência e imaginário) Cap.VII.”Ficção e imaginário (Sonho e devaneio”,”Literatura e imaginário”, “Os seres fantástico”).P.208-258.
12)MAGALHÃES, Antònio Carlos. PORTELLA, Rodrigo. Expressões do sagrado.Aparecida-SP: Santuário, 2008
13)-MONNEYRON, Frédéric. Mythes et Littérature. Paris: PUF, 2002.
14)MORIN,Edgar (org.) A religação dos Saberes. Rio de Janeiro:Bertrand Brasil,2002.
15)-PARIZET, Sylvie (org.). Mythe et Littérature. Paris: SFLGC, Sorbonne, 2008
16-RELIGIOLOGIQUES, revue de Sciences Humaines et Religion, Université du Québec à Montréal, N°4,1992 : Littérature et Sacré ( avec une étude de Sébastien Joachim).
*17a)-RICOEUR, Paul. Anthologie.Paris:Seuil,2007. Destacamos a introdução de Michel FOESSEL: « Paul Ricoeur ou les puissances de l´imaginaire », p.7-22.
*17b) RICOEUR, Paul .Finitude e Culpabilité:La symbolique du mal.Paris:Aubier,1988.
*18)-ROCHA PITTA, Danielle Perin. Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand. Rio de Janeiro: Atlântica,2005
19-TESSIER, Robert. Paradis et enfer: une approche socio-religiologique de l´aire sémantique de l´outre-mort dans les journaux québécois. Religiologiques, N°3, Montréal, Automne 1991, 111-136. Um apaixonante estudo com uma metodologia apurada sobre a simbólica do sagrado nos jornais do Québec
*20) WATT,Ian. Mitos do individualismo moderno. Fausto. Dom Quixote, Dom Juan, Robinson Crusoe. Trad. Mario Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997
21WUNENBURGER,Jean-Jacques.L´imaginaire.Paris:PUF,2003.
22)WUNENBURGER,Jean-Jacques. Le sacré. Paris: PUF, 2001(4ª edição).
+ As Leituras recomendadas a seguir (Ricoeur,David Gonçalves, Michel Leiris, H-R. Jauss umas referências mais palatáveis que a maioria das supra-listadas.
:
i) Estudar o mito (a Mitodologia) com os recursos da Hermenêutica Filosófica de Paul Ricoeur.
O enfoque principal passa assim a ser: A Simbólica do Mal, uma obra de Ricoeur condensada num setor do seu livro “O conflito das Interpretações(cf. n° 17 em nossa bibliografia),
ii) concretizar a busca de “schèmes”, arquétipos, símbolo, imagens, pela leitura de algumas páginas da novela “As sementes do sol” de Raimundo Carrero. OU de textos escolhidos pelos próprios alunos
iii) aprofundar no mês de abril a temática do mal, pela leitura comentada de Trechos significativos de O Sol dos Trópicos”romance de David Gonçalves no qual esta temática se encontra magistralmente orquestrada.
iii) Continuando refletir na primeira quinzena de maio sobre o livro de David Gonçalves, construir analogias entre situações deste e situações do seu corpus de dissertação ou tese, ou de um texto do seu projeto futuro.
iv) Observar os extratos do Livros
ção”Os textos de ficção de que partirão as nossas reflexões e análise são: , uma varredura de certas passagens que incitam à Mitodologia , e que se encontram pela na novela de Raimundo Carrero, As sementes do Sol , e que comentei um pouco no meu livro Cultura e Inclusão Social em Ariano Suassuna e Paulo Coelho (Editora da UFPE,2008);
2) em segundo lugar, e principalmente como foco de análise : “ Diversos Trechos”do belíssimo romance do paranaense David Gonçalves, O Sol dos Trópicos,(Joinville: Sucesso Pocket, 2010, WWW.dadid.gonçalves@uol.com.br . O livro acabou apenas de sair, recebeu aplauso da inteligentsia brasileira, mas haja visto o sua saída recente, a circulação é restrito, mas umas poucas cópias me são disponibilizadas graças à cortesia do Autor.( Mestre em Literatura, Editor , Ativista para com as bóias-frias, cujos trabalhos foram interditados pela Ditadura militar).
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Principalmente neste último texto, procederemos da maneira seguinte;
a) levantamento das imagens cósmicas, das reminiscências bíblicas, dos , personagens, das situações em que se dá a ler a problemática do mal
b) estabeleceremos redes de relações que facultam elaborar um discurso crítico sobre esta problemática, com o apoio de Ricoeur e das categorias da Mitodologia de Gilbert Durand.
c)Passaremos depois a observar atentamente como procede a Mitopoética a partir do Mito de Faust do seu nascimento pós-medieval até o primeiro pós-guerra do século XX (Mon Faust ou Faust III, de Paul Valéry), transitando por Goethe no século XIX (Faust, o Segundo Faust), deixando, porém, de lado a ópera de Berlioz e a ópera de Gounod. Lançaremos mão aqui de duas referências: O livro de Ian Watt que está na Bibliografia, (cf.supra) + um capítulo do livro de Hans Robert Jauss intitulado Pour une Herméneutique littéraire, :”Le Faust de Goethe et Le Faust de Valéry ( ou de La difficulté de mener à terme um mythe)”. Paris ,Gallimard,1988)..
d) Encerraremos a Poética do mal stricto sensu pela primeira parte do belíssimo estudo de Michel Leiris sobre o homem vencedor do mal simbólico, Espelho da tauromaquia, Cosac & Naify,São Paulo, 2007 (se encontra na Livraria cultura).
e) como corolário, ofereceremos como lembrança 3 estudos sobre o mito das origens, de onde saiu a Temática do Mal.
Embora esteja priorizado o material acima sugerido, para melhor coordenação da disciplina e evitar a dispersão, é aconselhado utilizar este material como fonte de inspiração ou de comparação para sua exposição pessoal. O professor considera o corpus de sua tese ou dissertação prioritário para qualquer exposição no âmbito das disciplinas que ministra.

Lendo, discutindo, refletindo sobre a parte de material que terá tempo de digerir e realizando uma ou duas resenhas para a sua exposição entre meio maio e 22 de junho, pode dar a sua missão pré-tese ou pré-dissertação ou pré-projeto como cumprida à nossa mútua satisfação.Esteja em paz.

Abraço a todos/(as).
Professor Sébastien, ]
Domingo , 14/03/2010.